Ignorante por conta própria

“Autodidata é um ignorante por conta própria”, dizia Mário Quintana, jornalista sem diploma por quase toda a vida. Também sem diploma e com quase uma vida dedicada ao jornalismo, concordo com o poeta: por conta própria, tudo é sofrido e demorado porque perdemos muito tempo aprendendo o que um mestre nos ensinaria em poucos traços.

Aos 20 anos, não pisei pela primeira vez na redação do jornal como aspirante a jornalista; entrei com uma pilha de desenhos embaixo do braço com o sonho de ser cartunista. O que não era um sonho modesto, era um propósito pretensioso para um jovem que nunca tinha passado por uma escola de arte e, o mais antagônico, recém-saído de um colégio agrícola. Cansado de plantar batatas, certo dia tive coragem de comunicar ao meu pai:

– Vou ser cartunista!
O pai, que gostaria de ver o filho com um diploma de advogado, me fez uma pergunta para a qual nem eu mesmo tinha uma razoável resposta:
– Cartunista, o que é isso?

E assim entrei na redação da Rua Barão do Rio Branco, autodidata e ignorante por conta própria. Em jornal já fiz de tudo, pintei e bordei, digo com orgulho. De mesa em mesa, de tombo em tombo, com muitos erros e modestos acertos, com muito esforço e sem o talento de Mário Quintana, fui de diagramador e “pastapeiro” (alguém ainda lembra que o texto calculado em paicas era fixado na página com cola Prit?) a editor, até chegar ao hoje cronista com a missão de matar um leão por dia (muito tenho mirado no felino, bastante tenho errado na lebre).

Destes quase 40 anos de sofrido aprendizado (e muito ainda não aprendi), me restou a certeza de que o cartunista e o jornalista poderiam ter realizado muito mais e melhor se não fossem eles autodidatas. O cartunista demorou anos para acertar a mão, aprender a desenhar os dedos com suficiente expressão. O jornalista está mais perdido do que nunca com a reforma ortográfica, e aos trancos e barrancos vamos levando.

Assim sendo, um ignorante por conta própria, me arrisco a dizer que o fim da obrigatoriedade do diploma para se exercer o jornalismo não vai mudar muito o futuro desse ofício cada vez mais sofisticado, cada vez mais exigente de profissionais com sólida formação cultural, múltiplas aptidões e, sobretudo, com certificado de competência.

E chame-se a isso de diploma, se assim preferem os tantos estudantes que devem sair da universidade “ignorantes por conta dos outros”, tamanha é a distância entre a escola e o mercado de trabalho, agora dominado pela tecnologia. Jornalista por conta própria, quem sou eu para analisar currículo escolar? Do que tenho lido da polêmica, o problema não está no diploma, mas nas escolas de jornalismo, instituições que serão poucas, mas boas. Qualidade e não quantidade, porque daqui em diante está aberta a temporada de caça ao talento, não ao diploma. No entanto, o diploma não deixará de ser um valioso troféu de caça a ser devidamente valorizado.

A escola sempre será a principal referência, mas o criativo autodidata por conta própria sempre será muito bem-vindo, porque o talento é uma exceção a qualquer regra.

vvv

Refazendo os passos daquele distante dia em que entrei pela primeira vez na redação de um jornal, faria agora uma meia volta na Rua Barão do Rio Branco e, sem deixar de submeter aqueles meus toscos desenhos ao editor, tomaria o rumo da Escola de Belas Artes, na Rua Emiliano Perneta.

E se tivesse o firme propósito de me tornar jornalista, ali mesmo na Barão do Rio Branco iria me matricular no Bar e Restaurante Palácio, a melhor escola de jornalismo da época. Lá, dentre a fumaça, ninguém saía com diploma, saía com os atalhos da profissão.

O caminho não seria tão tortuoso e, com os mestres à mesa, quem sabe o ignorante por conta própria poderia então escrever um livro chamado Como eu se fiz por si mesmo.