Na quarta-feira passada, o governador convocou Íttala Nandi para jantar. A atriz levou um acompanhante, Glauber Rocha. ?Eu sempre trago minha biografia comigo, quando tenho compromissos importantes.? Anfitrião de mesa farta e heterodoxa, Roberto Requião ofereceu pierogue com chucrute e polenta!

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O cineasta Glauber Rocha ergue-se levemente da mesa e aproxima o nariz da travessa de pierogue, à sua frente:

– É pastel de polaco, governador?

– Digamos que sim. O ex-governador Bento Munhoz da Rocha dizia que ?o polaco é nosso!?. E com razão. Curitiba, depois de Chicago, tem a maior concentração de polacos das Américas. Como eu entendo muito mais do Paraná do que o Bento, digo mais: ?O pierogue também é nosso!?. E se pronuncia ?pierogue?, Íttala!

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A diva continuava pouco à vontade, talvez ainda preocupada com a entrevista onde declarou que o Paraná é um estado fascista.

– Governador, estou lendo um livro do escritor Gore Vidal – A era dourada – narrativas do Império, que trata dos bastidores imundos de Washington. No auge da grande Depressão, todos queriam ensinar o que o presidente Hoover deveria fazer. Até a General Electric se ofereceu para assumir o governo e administrar os Estados Unidos. Herbert Hoover foi um desastre, mas deixou para a história americana um momento de reflexão. Acuado, Hoover teve a inspiração de dizer que aquilo de que realmente o país precisava era um grande poema. Alguma coisa que tirasse as pessoas do medo e do egoísmo.

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Naquele momento, uma mariposa voejou em torno da cabeça rosada do governador.

– Íttala, a frase não é minha, é sua: ?Eu jamais vi um estado coberto de maior terror do que o Paraná. Os meus alunos, a maioria deles, têm depressão. E depressão é fascismo. Portanto, há repressão nesse estado, em todas as partes?. Meu bem, com essa parolagem do Hoover, você está querendo dizer que preciso sair por aí declamando poesias?

– Absolutamente, governador! Estou tentando dizer que, naquela entrevista, deveria ter me restringido a recitar um poema. Talvez assim eu fosse melhor compreendida.

O governador afastou a mariposa com uma das mãos. Com a outra, retomou o copo e a palavra:

– Uma vez na vida, todos têm o direito de enfiar um sorvete na testa. Eu, por exemplo, até mastiguei mamona. O que me amofina é que você deu munição para essa imprensa canalha. É o que eu sempre digo ao Benedito Pires: os inimigos têm todos os demônios espertos; nós só temos anjos retardados.

Glauber Rocha, que aparentemente tentava decifrar o significado antropológico da esquisita mistura de pierogue com chucrute e polenta, levantou o queixo para ouvir o anfitrião:

– Glauber, você, que está vindo do céu e do inferno, não acha que o diabo está à solta?

– Está à solta, porque não se pode ampliar o domínio do governo sobre a vida cotidiana do povo sem que o governo domine a alma e o pensamento do povo; e foi isso que os fascistas fizeram.

– Glauber, essa frase é do Gore Vidal! – exclamou Íttala, com os olhos arregalados.

*****

Após os ?fios de ovos?, os comensais foram passear no bosque. O governador manteve conversas íntimas com alguns pássaros noturnos, passou sermões em esquilos e deu conselhos de higiene a um gambá perdido nos jardins do Cangüiri.