?O governador lhe aguarda para o jantar? – a voz ao telefone tinha um forte sotaque paranaense. ?LeitE quentE – LeitE quentE? – repetiu Íttala Nandi, após desligar o aparelho. Era início da noite e convinha se apressar. O convite era uma gentil intimação. ?O que você achou da minha entrevista?? – ela já havia perguntado ao governador. ?Sinistra!? – ele respondeu – ?Precisamos conversar!?.

continua após a publicidade

Íttala Nandi largou um livro de Gore Vidal sobre o sofá e foi ao espelho retocar a maquiagem: ?Olhou para o seu rosto mais recente e achou que estava bom… o suficiente. Desde que matara sua persona de estrela cinematográfica, tanto tempo antes, a necessidade de se preocupar com a sua aparência passara a ser mínima. Apesar de haver, por pura força de vontade, esquecido completamente a própria idade… sessenta? Não, cinqüenta… ela conseguia se manter tão conservada que ainda podia passar por mais jovem, embora mais jovem do que exatamente já não fosse um conceito ou uma referência útil?.

– Como escreve bem esse Gore Vidal! – recordava a atriz e coordenadora da Escola Sul-Americana de Cinema e Televisão do Paraná, enquanto embarcava na viatura oficial que a levaria à Granja Cangüiri, residência oficial do governador.

– Boa noite, senhor governador!

continua após a publicidade

Íttala Nandi parecia pouco à vontade. Por um instante, sentiu até que deveria fazer uma reverência naquela presença intimidadora; Roberto Requião se faz imponente até quando refestelado numa cadeira de balanço.

– Ittala! – a voz forte ressoou na edícula do Cangüiri, e o governador aproveitou o impulso do balanço para se levantar da cadeira – Trouxe um acompanhante?

continua após a publicidade

– Quero lhe apresentar o meu amigo Glauber Rocha!

– Glauber Rocha? Mas ele já não havia morrido?

– Eu sempre trago minha biografia comigo, quando tenho compromissos assim, importantes. Hoje, eu trouxe o Glauber!

– Glauber, fique à vontade. Aqui na granja estamos acostumados com fantasmas. Alguns talvez sejam funcionários fantasmas. É mais provável que sejam pretendentes frustrados a um cargo qualquer. Seja na vida ou na morte, eles nunca nos deixam em paz.

– Governador, que coincidência: por acaso essa frase não é do Gore Vidal?

– Ao contrário do que tenho lido em certas entrevistas, eu consigo ditar o meu próprio texto; sem falar bobagens.

– Achou tétrica a minha entrevista?

O governador arrastou Glauber Rocha até uma garrafa de uísque e, generoso no gelo, respondeu com outra pergunta:

– Não foi tétrica, Glauber?

– Tétrica! Especialmente quanto à etnia tedesca.

– Tedesca? – interrompeu Íttala – Eu nem citei os tedescos!

– Querida, estou me referindo aos alemães! Por exemplo, o general Ernesto Geisel foi o orgulho da raça. Enquanto todos o maldiziam, fui o único a acreditar no projeto de abertura política do alemão. Por apoiar a política de distensão lenta e gradual do tedesco, fui crucificado pela imprensa!

– A imprensa canalha! – completou feliz o governador.

– Na época, a imprensa era marrom!

– Glauber, a conversa está ficando bem interessante. Vamos jantar e depois (sexta-feira) a gente volta. Ítala, em sua honra, hoje teremos pieroge com chucrute e polenta!