Geia, professor?

Era uma vez uma jornalista que telefonou para o professor Leopoldo Scherner: “A previsão do tempo diz que a temperatura vai cair ainda mais. O senhor poderia tirar uma dúvida?”. A voz paciente do mestre não deixou a repórter concluir a pergunta: “Geia, minha filha. Geia!”.

Paciência é especialidade dos poetas. Naquele mesmo dia de quase zero grau, depois de perguntar ao professor Iwamoto da possibilidade de fortes geadas, vários jornalistas já haviam consultado o poeta Leopoldo Scherner. Oráculo de quatros estações, o gentil mestre respondia a todos com antecipação:

– Geia!

Ernani Buchmann não nos deixa mentir. Naqueles tempos de frio de doer os ossos, jornalista de bom juízo tinha que guardar na primeira página da agenda o telefone de duas pessoas: Oswaldo Iwamoto, para assuntos do tempo; e Leopoldo Scherner, para assuntos gramaticais.

Numa manhã de céu azul límpido, sob o sol que nos protegia temporariamente do vírus da gripe suína (H1N1), quase telefonei para o professor Leopoldo Scherner para perguntar qual a origem da palavra vacina, não fosse a internet. E estava lá, “Nossa língua, nossa pátria”, coluna do jornal O Estado do Paraná, assinada pelo mestre:

“No dia 12 de junho, foi anunciada a produção do primeiro lote de uma vacina contra a gripe suína, que será usado para avaliações clínicas. Alvíssaras! Desta vez, o Brasil sai na frente. O termo vem do latim vaccina, que significa ‘de vaca’, uma vez que as primeiras vacinas foram produzidas a partir dos vírus da varíola presentes em vacas, em pústulas em tetas de vacas”

Ex-aluno de Manuel Bandeira e Alceu Amoroso Lima na Faculdade Nacional de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro, Leopoldo Scherner é mestre dos mestres e todos assinam embaixo do que o próprio escreveu numa de suas crônicas:

“Como professor, tendo nascido em 22 de junho de 1919, em São José dos Pinhais, mostro a meus companheiros de magistério que as melhores aulas são aquelas que partem de dúvidas e perguntas. Se não houver dúvidas, a aula não é boa, não houve assimilação. Se todos ‘entenderam bem’, é sinal de que muitos não entenderam ou não se interessaram pelo assunto. É preciso que alguém conteste alguma coisa. Minhas aulas têm que ser, necessariamente, alegres. Sempre me considerei aluno dos meus alunos, pois, com eles, aprendo muito; graças a eles, muitas vezes, tenho que mudar minhas posições de ordem didática, pedagógica e de conteúdos”.

A geada no Paraná, diria o meteorologista Oswaldo Iwamoto, sempre está associada com a passagem de massas polares de grande intensidade, que se deslocam preferencialmente de sudoeste para nordeste. Quando há queda intensa de temperatura provocada pela massa de ar polar, em ausência de nuvens e baixa umidade do ar, o resfriamento noturno é intenso, podendo atingir o nível de dano de muitas espécies vegetais.

Com o céu de poucas nuvens, com uma ou outra nos espiando do topo da Serra do Mar, com o sol que veio fazer uma visita de caridade a nós todos que estávamos ameaçados pela gripe ainda sem vacina, seria aquela boa hora de telefonar ao professor Leopoldo Scherner. O aluno de Manuel Bandeira responderia então, interrompendo gentilmente a pergunta:

– Não geia! Ele é misericordioso, se Deus quiser não geia.

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Dono da cadeira número seis da Academia Paranaense de Letras, o poeta de 91 anos sofreu derrame cerebral e em 27 deste janeiro nos deixou. Do mestre, lembrou o advogado Rogerio Distefano: “Professor de literatura no Colégio Estadual do Paraná, emprestava livros para os alunos conhecerem os poetas concretistas na Curitiba que no espírito e na moral se fingia -como ainda se finge -parnasiana”.