Galochas & Galochas

“Não existem mais cidades como antes, incluindo esta que habito. A cidade está aí, reconheço, mas não é a verdadeira. É sua imagem refletida por algum acrílico capaz de retificar a realidade.” De Ernani Buchmann, no livro O Bogart Curitibano, em busca das galochas perdidas, porque “nenhum curitibano deveria passar sem galochas”.

“Retro, Satanás”, esconjura Ernani Buchmann, “porque não sou nostálgico, nem pretendo liderar o movimento restaurador da vila de antanho”. Feita a ressalva, o escritor lamenta alguns hábitos curitibanos extintos pela obsolescência: “As coalhadas, por exemplo. Alguém ainda deve produzi-las, mas desconheço o local. Com o sabor daquelas da Schaffer, jamais”.

E as galochas, onde foram parar? No conto Galochas assassinas, Buchmann lembra bem delas, com Humphrey Bogart em cartaz no Cine Lido: “Nos cinemas, durante os longos períodos de chuva, a entrada de um sujeito de galochas chegava a abafar a trilha sonora”.

O livro de Ernani Buchmann não é autobiográfico, como faz parecer o título. O Bogart Curitibano vem de uma das crônicas, onde o autor é confidente de um funcionário do Tribunal de Justiça que vive escondido em casa: “Não sei se desde a segunda separação ou se desde que comprei, na velha livraria ao lado, um livro chamado Como tornar-se Invisível em Curitiba”. Não é o caso de Ernani Buchmann. Por ter sido presidente do Paraná Clube, essa liga de publicitário e escritor nunca mais conseguiu passear pelas ruas da cidade em brancas nuvens, e dizem do intransparente: “Se fosse bem mais baixinho, com chapéu e capa gabardine, Ernani seria o próprio Humphrey Bogart. Pena que não fuma”.

No livro, o paranista não esclarece se Humphrey Bogart usava galochas. Mas tudo indica que sim, charmoso e elegante que era: “Os mais bem de vida chegavam a ter mais de uma. E todos desfilavam aquele “chlap-chlap” de borracha delgada dobrando na sola do pé, os sapatos bem engraxados abrigados dentro delas”.

Ernani desconfia que as galochas sejam hoje mais obsoletas que polainas. Eu diria ainda, são mais obsoletas que o chapéu do Humphrey Bogart. Se é dos carecas que elas gostam mais, seriam eles bem mais amados se usassem chapéu. Senhor, hoje sendo o chapéu um atestado de senilidade, como a calvície sofre com o frio de Curitiba!

Depois de atravessar com graça as 13 crônicas do “Bogart de Curitiba”, resta a pergunta da página 53: onde foram parar as galochas de Curitiba?

Algumas delas devem restar esquecidas nas lojas de utensílios e móveis usados da Rua Riachuelo: “Se fossem jogadas num mesmo local, ao modo dos pneus, seriam um atentado contra a saúde pública. Os ecologistas viriam à mídia bradar contra o perigo das galochas, incapazes de degradar no meio-ambiente. Os sanitaristas reclamariam dos focos de reprodução do mosquito da dengue. Milhares de pessoas estariam sendo afetadas, o futuro do cidadão curitibano comprometido”.

Em busca das galochas perdidas, convém esclarecer: existem Galochas & Galochas. Temos as galochas com modelitos Pucciáe Prada, mas as grifes que nos desculpem: coloridas, não são veras galochas. Black is Beautiful. Galocha estilo Humphrey Bogart tem que ser preta, da marca Sete Léguas.

Das Galochas & Galochas, temos de outro tipo. Do tipo desumano, são fáceis de encontrar em Curitiba. No Pilarzinho, galochas fecharam a Pedreira Paulo Leminski. Não se sabe quantos intolerantes exemplares existem naquele bairro, alegando que a alegria de viver perturba o sono eterno da vizinhança. E ontem os candidatos a vereadores estrearam no horário político da televisão. Observem os tipos de galochas, até conseguem decorar algumas frases.

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O Bogart Curitibano, de Ernani Buchmann, será lançado no dia 21 de setembro, domingo, Dia da Árvore antecipando a primavera, no Solar do Rosário. Se não for para proteger os sapatos, galochas não entram.