Escravos de Jó

Por ter sido um irrecuperável autodidata (ou seja, “um ignorante por conta própria”, no dizer do poeta Mário Quintana), tenho apenas o diploma de Mestre Agrícola. Estudei no Colégio Agrícola de Camboriú por cinco anos. Regime interno, com uma agenda assustadora para os meninos da cidade: 6h, despertar; 6h30, estudar ou tirar o leite das vacas; 7h30, café da manhã; 8h30, aulas; 12h, almoço; 14h em diante, trabalho na horta e na roça: arar a terra para plantar morango, alface, tomate, batata, milho, mandioca, feijão, arroz, cortar o canavial e capinar o laranjal. Do trabalho braçal vinha o melado que adoçava um pouco a vida daqueles meninos desgarrados de casa. 

Ao anoitecer, a biblioteca nos recebia de livros abertos. Foi lá que descobri os mestres franceses de capa e espada, a começar por Michel Zevaco, para dormir às 21 horas com Lucrécia Bórgia na Ponte dos Suspiros.    

Posso dizer que comecei a trabalhar aos 14 anos, no cabo da enxada. De 1964 a 1968, foram cinco anos de concentração no campo, ou seria um campo de concentração? O ano de 1969 não passou em branco. Fui contratado pelo próprio colégio como desenhista, encarregado de preparar e ilustrar material didático. Desenhei e pintei morangos, cenouras, batatas, laranjas, folhas e flores, daí que hoje escrevo abobrinhas.

Antes de pintar tomates, plantei tomates. Como parte do aprendizado agrícola, os alunos recebiam uma pequena área de terra e financiamento da cooperativa agrícola colegial para plantar o que cada um bem entendesse. Após a colheita, levávamos os produtos às feiras para vender. Com aquele dinheiro, pagávamos a cooperativa e ainda sobravam alguns trocados para gastar nos fins de semana em Balneário Camboriú. Mesmo com as mãos calejadas da enxada, éramos garotos que amavam os Beatles e os Rolling Stones… Enquanto isso, a ditadura nos fazia dançar conforme a música. No dia 13 de dezembro de 1968, lembro bem, nos mandaram plantar batatas.

Quarenta e tantos anos depois, com base nos argumentos do Ministério Público do Trabalho para investigar o coral do Palácio Avenida por exploração de menores, estou me achando no direito reivindicar do Estado uma indenização por aqueles anos de trabalho escravo no colégio agrícola.

Escravos de Jó, que jogavam caxangá, pião, bolinha de gude e futebol.