Escravidão urbana

Dados divulgados recentemente pela Polícia Militar mostram o óbvio ululante: o crescimento de 7% no número de homicídios dolosos (quando há a intenção de matar) no ano de 2014 afasta cada vez mais os curitibanos da região central da capital.

A fábula é clássica e pode ser adaptada: de tanto perder para os gatunos, os camundongos políticos (se disser ratinhos, podem pensar outra coisa) se reúnem num estúdio de televisão para debater qual a melhor solução para combater a violência. Depois de muito palavrório, chegam ao consenso que é preciso, de alguma forma, forçar o gatuno a fazer barulho ao se aproximar e assim dar tempo aos ratos de se proteger. A proposta é aprovada por unanimidade e todos concordam que o melhor é colocar um guizo no pescoço do bichano. O plano é perfeito, mas só emperra com uma pergunta que nenhum político ousa responder: quem vai botar o guizo no pescoço do gato? Se botar o guizo no pescoço do gatuno já é temerário, quem é o corajoso que vai botar outro guizo no pescoço da autoridade responsável pela segurança pública? Municipal, estadual ou federal, quem de fato é o responsável pela segurança pública?

É óbvio ululante, nessa briga de gato e rato é melhor esquecer o guizo e se trancar em casa.

Óbvio ululante é uma expressão criada e popularizada pelo escritor Nelson Rodrigues, também título de um dos seus livros. É óbvio ululante que a população de Curitiba abandonou a rua e está refugiada no shopping. Perdemos a batalha para os bandidos, enfim, e entregamos o território ao inimigo. Qualquer pesquisa a ser feita vai revelar o óbvio ululante: 36% já foram assaltados; 42% não registram queixa; 67% adotaram algum plano de segurança; 79% consideram que alguma rua do Centro é insegura.

Com 1.864.416 habitantes (IBGE/2014), é óbvio ululante que Curitiba não é mais aquela vila de 1820 que o naturalista Auguste de Saint-Hilaire conheceu. Muito bem instalado, o capitão-mor encarregou um guarda de atender e receber ordens do visitante. Depois de conversar com o miliciano e admirar todo aquele sossego, Saint-Hilaire amavelmente o dispensou:

“Não podia existir nada mais encantador do que a posição da chácara onde eu me achava alojado. Situada numa colina a pouca distância de Curitiba (seria no Alto da Glória?), ela domina toda a planície onde a vila está construída (…) Passei nove dias em Curitiba, cumulado de gentilezas pelo capitão-mor e pelos principais moradores. Não há dúvida de que desde que cheguei ao Brasil, em nenhum outro lugar eu tinha recebido melhor acolhida”.

Naquele mês de março, Saint-Hilaire deu boa-noite às corujas e foi dormir de portas e janelas abertas: “Fazia muito tempo que eu não sentia tanto calor quanto em Curitiba”.

Com números de 1838, assim Saint-Hilaire contabilizou a população da Vila Nossa Senhora da Luz dos Pinhais: Brancos dos dois sexos: 9.806 / Mulatos livres: 4.119 / Negros livres: 289 / Mulatos escravos: 704 / Negros escravos: 1.237 / Escravos: 1.941 / Indivíduos livres: 14.214 / Total: 16.155.

Analisando os números de ontem e de hoje, podemos concluir que Curitiba retrocedeu. Em 1838, tínhamos 1.941 escravos e 14.214 indivíduos livres. Em 2015, o quadro se inverteu: hoje temos uma minoria absoluta de indivíduos livres (bandidos com total liberdade de ir e vir, donos das esquinas, mandatários nos bairros, com o privilégio de circular no Centro à noite) e quase dois milhões de escravos trancados em seus respectivos domicílios.
É óbvio ululante: trancafiados em modernas senzalas (também chamadas de condomínios horizontais e verticais) com altas grades de ferro e vigilância eletrônica, somos escravos dos bandidos.