Era uma vez na Copa de 74

Com muito esforço, há quem compare a Copa do Mundo de 1970, no preto e branco da ditadura, com esta Copa do Mundo, em pleno colorido da democracia. Tanto ontem quanto hoje, tanto a esquerda quanto a direita tentam fazer do futebol um cenário para acobertar as nossas misérias. Como diz o Dadá Maravilha, o herói coadjuvante da seleção do México, “uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”.

Na ditadura assisti a duas Copas do Mundo, uma dentro e outra fora do quartel. Em 1970, como soldado raso no quartel da Praça Rui Barbosa, cansei – literalmente – de participar de palestras de lavagem cerebral com oficiais superiores. Com todos em forma, a ordem do dia era enaltecer o regime militar. Como se os feitos em campos de futebol fossem uma consequência da ordem e do progresso, todos os brasileiros deveriam sair às ruas embandeirados, com as cores nacionais.

“Brasil: ame-o o deixe-o!”, ordenavam os generais dentro dos quarteis. “Ameixas: ame-as ou deixe-as!”, murmurava Paulo Leminski no lado de fora.

Ainda sob o tacão dos generais, com o repórter Amaral Neto batendo continência numa TV Sanyo 26 polegadas que João de Pasquale havia acabado de instalar no seu restaurante do Passeio Público, assisti a Copa do Mundo de 1974 ao lado de uma trupe de cartunistas que participavam de uma mostra coletiva de humor. Sem nenhum mecenato do governo, solenemente ignorados pela cultura oficial, estavam expondo no Teatro do Paiol alguns dos mais celebrados cartunistas da imprensa nanica. Nomes que estavam em ascensão, como Angeli e Edgar Vasques, guerrilheiros armados de tinta nanquim até os dentes.

Postados numa longa mesa formada ainda por jornalistas, atores e intelectuais, a princípio aqueles ortodoxos inimigos da ditadura ignoraram solenemente o aparelho de televisão ao fundo. Futebol era o ópio do povo, mais importante que o movimento entre as quatro linhas da Copa do Mundo que se desenrolava na Alemanha era um jornal chamado Movimento, assunto preferencial daquela confraria de esquerda.  

Se não me falha a memória, foi no dia em que o Brasil foi eliminado pela Holanda. Antes da partida, o técnico Zagallo havia afirmado que o Brasil desconhecia aquela tal de Laranja Mecânica. O futebol brasileiro, até então, só tinha conhecimento da laranja baiana.

Assim que começou a partida, silêncio na mesa dos cartunistas e agregados. De olho na telinha, aos 40 minutos do segundo tempo todos se voltaram para o escritor e teatrólogo Manoel Carlos Karam que – para alívio geral – foi o primeiro a ter a coragem de puxar da camisa a sua tabelinha da Copa. O segundo foi o já consagrado cartunista Edgar Vasques. Outros mais sacaram de suas canetas e assim, na santa paz da consciência, anotamos o resultado final da peleja: Holanda 2 x 0 Brasil.

Se me perguntarem agora se há alguma coisa em comum entre a Copa do Mundo da ditadura e esta Copa do Mundo da corrupção, tenho a dizer que sim: a tabelinha dos jogos. Daquelas pequenas e dobráveis, para caber no bolso da camisa.