Era uma vez (2)

Ontem, trocando figurinhas com Wilson Bueno, transcrevi trechos de um artigo do jornalista Luiz Geraldo Mazza (Iguaçu, o nosso Ganges, o nosso Reno) publicado em 1992, um privilégio das estantes dos colecionadores. Da mesma safra, o jornalista João Dedeus Freitas Netto rememorou a tradição curitibana de bem morar.

Quem foi João Dedeus Freitas Netto? Parafraseando Ernani Buchmann (ao se referir a Nireu Teixeira), “trata-se de um homem de múltiplas profissões, ainda que o tomem por jornalista, médico e jogador de basquete”. Notável jornalista, filho de um notável jornalista, Rodrigo de Freitas (1888 – 1945), irmão de dois jornalistas igualmente brilhantes, o falecido João Dedeus praticamente cresceu dentro da redação de O Dia, na Praça Carlos Gomes, 24. Estudante de Medicina em 1943, não chegou a freqüentar o segundo ano: foi convocado para o 4.º Escalão da FEB e, em 1945, serviu na Itália, junto ao Hospital do Banco de Sangue, em Montese.

Curitiba, tradição de bem morar (Do fogão de lenha ao lambrequim), é o título do artigo para a Memória da Curitiba Urbana. Nele, evidentemente, João Dedeus Freitas Netto ressalta que o edifício, a habitação coletiva, surgiu por contingência social, com o uso do solo cada vez mais difícil.

E, paradoxalmente, o modismo, alimentando o esnobismo e a ostentação, de certa forma empobreceu o bem morar de ponderável camada social de maior poder aquisitivo (é um tal de places, de goldens, de gardens). Freitas Netto enumera então as perdas e ganhos do bem morar: o fogão a lenha (também aquecedor e calefador); a madeira (de material para construção a elemento plástico); o limpador de chaminé (que levou consigo a lenda da cegonha); os móveis do Paraná que tinham notoriedade nacional (o fim do guarda-comida e da cristaleira); segurança (do ganso, o cachorro de polaco, ao alarme eletrônico); tudo naquela pequena Curitiba onde as casas e edifícios tinham até apelido.

Ah, os apelidos das casas e edifícios: a “Mansão das Rosas”, no Alto da Glória, reunia em noites memoráveis a sociedade curitibana. A grande anfitriã, dona Mercedes Fontana (matriarca da elite ervateira), passeava com seu carro de placa n.º 1 pelas aléias do Passeio Público, privilégio só a ela concedido. Da mansão aristocrata à edificação moderna, conta Freitas Netto: “A primeira construção de moderna arquitetura, ali na Comendador Fontana, não foi bem entendida pelos curitibanos, que lhe deram o epíteto de ‘estrebaria’, tributo pago pelo pioneirismo do grande arquiteto paranaense Vilanova Artigas. Depois vieram os edifícios. O Palácio Avenida, do Feres Merhy, hoje preservado pelo Bamerindus (HSBC); o edifício Garcez, primeiro arranha-céu curitibano; o ‘balança-mas-não-cai’, na Cândido Lopes com Ébano Pereira; o ‘signal’, com suas faixas vermelhas na fachada (referência a uma pasta de dente), na Avenida Rio Branco; o ‘eletrocardiograma’, na Comendador Araújo”.

E os lambrequins, Freitas Neto, onde foram parar os lambrequins?

“A gradativa escassez de madeira fez com que a alvenaria se tornasse mais barata. O concreto substituiu as vigas de peroba, de canela, de araribá, e as construções perderam o encanto dos lambrequins, dos assoalhos de tábuas largas, das varandas de grades de madeira torneada. O lambrequim, enfeite de madeira recortada, no beiral da casa, era obra artesanal. Até concursos se realizavam para pôr à prova a imaginação e a criatividade de quem os confeccionava, muitas vezes os próprios moradores, usando arcos de serra.” E a lenda da cegonha, Freitas Netto, onde foi parar a lenda da cegonha?

“Com o fogão a lenha desapareceu, também, um profissional de curioso aspecto: o limpador de chaminés. E o limpador de chaminés levou com ele a lenda de que Papai Noel e a cegonha chegavam às casas por aquela via…”

Era uma vez. Hoje Papai Noel e a cegonha são encontrados apenas nos shoppings que, curiosamente, são desprovidos de chaminés.