Era uma vez

Para comemorar o Dia do Rio, justamente na semana das águas de Santa Catarina, o cronista Wilson Bueno nos fez uma revelação em Memória dos Rios: nunca viu um rio em Curitiba, “a não ser o Belém dos contos de Dalton Trevisan e o Bacacheri que passa pelo meu bairro, esgoto oculto pelo matagal espesso”.

Wilson Bueno só sabe pelos jornais que Curitiba possui rios, uma infinidade deles, que cortam a cidade e a região metropolitana: “Mas até me comovi, vos confesso, com os nomes dos rios curitibanos assim reunidos feito fosse um poema fluvial: Piraquara, Pequeno, Passaúna, Curralinho, Verde, Miringuava, Atuba, Belém, Barigüi…. Quem lê, pensa que existem. Não, senhores, são só a memória de rios que talvez existiram um dia. É provável que o fundador Gabriel de Lara tenha bebido de suas águas”.

Curitiba é uma cidade sem mar (um dos nossos melhores defeitos e piores qualidades), mas não está desprovida de águas. Delas temos muitos berços e o principal deles, para orgulho maior, nasce nas fraldas da cidade.

Iguaçu, o nosso Ganges, o nosso Reno, é o título de um artigo do jornalista Luiz Geraldo Mazza publicado num dos volumes da coleção Memória da Curitiba Urbana, de 1992. O belo texto de Mazza é um dos tantos escondidos nas estantes, merecedores de republicação para informar aos meninos que peixes e rios um dia já existiram dentro das cidades. Wilson Bueno (poeta que fingiu não saber dos nossos rios) também sabe que Luiz Geraldo Mazza é um exímio pescador, principalmente de palavras: “Houve quem chamasse (haja exageros na retórica) Curitiba de Mesopotâmia, como se o Belém e o Ivo lembrassem o Tigre e o Eufrates. Convenhamos que em Dalton Trevisan, numa imprecação bíblica sobre o fim dos tempos em Curitiba, um imaginário e talentoso Apocalipse, o Rio Belém não seria cantado apenas como o aquário de um arisco lambari do rabo vermelho que lhe singrava as águas tanto nas imediações da estação ferroviária como no contorno do Centro Cívico, mas como uma corrente de sangue e na qual boiavam cadáveres uns sobrepostos aos outros”.

Para quem nunca viu um rio em Curitiba, Mazza tem uma explicação poética: “O rio na cidade é como o trem: inicialmente desejado para que fique o mais perto possível, depois é motivo de rejeição pela circunstância de que interfere na malha urbana. Ao trem se dá um tratamento urbanístico possível, afastando linhas, terminais, pátios de carga e manobras para fora do miolo urbano e ao rio busca-se escondê-lo, condenando grande parte do seu percurso à escuridão do concreto.

Assim ocorre, em boa parte do percurso, com os Rios Belém, Ivo, Juvevê, Pilarzinho, Bigorrilho”. E tem ainda o Barigüi, que o menino Luiz Geraldo Mazza conheceu de cabo a rabo: “Foi especialmente ao longo dessa bacia que os meus contemporâneos do fim dos anos 40s e 50s viveram as mais intensas aventuras ao longo dos seus numerosos acidentes, que tinham denominações folclóricas: quem pegasse a ponte sobre o rio na estrada do Cerne, em direção a Santa Felicidade, teria à esquerda os pontos de banho denominados “Princesinha”, “Carniça” e finalmente o mais procurado de todos a, “Panela”, onde desaguava um braço do Rio Uvu, que forma a represa da Cascatinha pouco acima; à direita tínhamos “O Toco” e logo depois da barragem que acionava o moinho Weigert vinha a famosíssima “Volta Funda”.

Por que Princesinha? Luiz Geraldo pergunta e responde: “A designação poética deve ter vindo num estalo como o do Vieira: as condições de luz, solarização, certamente, apoiadas pela quietude do ambiente, a vazão lenta, a arborização intensa (e talvez, quem sabe, até a floração dos vegetais) tinham a majestade não opulenta de uma rainha, mas a graça de uma princesa”.

Para fechar esse “Era uma vez”, repasso a palavra ao poeta Bueno: “Assim os rios de Curitiba, do Rio, de São Paulo… Aspiram a uma existência e não passam da memória longínqua e baça dos rios que foram um dia. Comemorar? Comemorar o quê?”.