Destino da Carioca

Ao Bicho-Papão há muito nos rendemos. Ao anoitecer, nossas ruas e avenidas ficam vazias com medo do Bicho-Papão e, no toque de recolher, nos refugiamos nos automóveis à procura do bom abrigo do shopping. E os pais imploram: “Pelo amor de Deus, não desliga o celular porque o Bicho-Papão pode te pegar!”

É tenso o início da noite no Paraná. Em resposta ao apelo de um anônimo aflito, que nos procurou para denunciar o toque de recolher em Quatro Barras, a prefeitura deste município da Região Metropolitana de Curitiba nos envia o seguinte esclarecimento:

– Em atenção à matéria denominada “Bicho-Papão”, saliento que o que ocorrera fora uma operação em conjunto com a Polícia Militar e fiscais da prefeitura, para se fazer cumprir a Lei n.º 02/2007, em seu Artigo 142 do Código de Normas do Município de Quatro Barras, onde esta lei estabelece horário de 22h como limite para o encerramento de suas atividades todo estabelecimento comercial que venda bebida alcoólica, bem como o fechamento daqueles estabelecimentos que não possuam alvarás de funcionamento. Sendo assim, não condiz o toque de recolher. Desde já, agradeço e me coloco à sua disposição para qualquer esclarecimento. Bel. Cariovaldo Ferreira.

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Conforme algumas pesquisas de opinião, muitos dos curitibanos se recolhem ao anoitecer com medo da polícia. Já grande maioria da população aponta como inimigo público número um o Bicho-Papão. Apesar de o Chapeuzinho Vermelho, com suas estatísticas, apontar o Lobo-Mau como o principal agente do crime desorganizado.

Dizia ainda na edição de ontem: hoje, todo cidadão é tratado como criancinha. Faltou dizer que o mapeamento da insegurança na malha urbana de Curitiba, igual histórias da carochinha, é de deixar os petizes de cabelo em pé.

Das nossas principais “faixas de Gaza”, a Igreja de Guadalupe é a matriz da Zona Portuária de Curitiba. É o cais de desembarque da região metropolitana e o endereço do “pátio dos milagres” do Detran, com suas filas de conformados que dobram quarteirões. Nas adjacências da Rua João Negrão, alcançando a Rua Das Flores, as lojas de 1,99 transformaram aquilo num oceano de pechinchas onde impera um monstro da melhor tradição monstruosa, o Dragão da Galheta. Oriundo de Paranaguá, o monstro marinho emerge na Zona Portuária de Curitiba e, ao anoitecer, costuma comer criancinhas errantes. Suas características já são sobejamente conhecidas: “O pescoço, repleto de glândulas encarnadas; a testa, com crinas crespas; as orelhas, escarlate; os olhos, pretos e redondos; as ventas, do tamanho de um punho; a boca rasgada; os beiços grossos; a barba também grossa na queixada; os dentes largos, unidos e cortantes; a língua redonda e as pernas, medindo um metro. Cada dedo mede vinte centímetros, e a cauda, um metro. Os pêlos são curtos e castanhos; grita como lobo e as grossas escamas fedem mais que um gambá”.

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Um pouco além da Zona Portuária, a Rua Riachuelo e seus afluentes deságuam no Passeio Público. Dos logradouros mais sinistros do centro, uma das portas de entrada do Centro Cívico, a Riachuelo é o parque de diversões do Vampiro de Curitiba. Ao cair da noite, e mesmo nas tardes escuras de inverno, em cada esquina podemos encontrar dezenas de personagens à espera do autor.

Era uma vez, a Rua Riachuelo era uma bica d’água. Em priscas eras, chamava-se Carioca do Campo, escreveu o historiador Valério Hoerner Júnior: “Ficou assim conhecida porque ali havia uma bica d’água e os moradores dela se serviam para os misteres da cozinha e da higiene”.

Anos mais tarde, os ufanistas da Guerra do Paraguai deletaram a simpática Carioca do Campo e a transformaram na belicosa Riachuelo de hoje: corredor do crack, ninho do baixo meretrício que ronda o Passeio Público.

Triste destino a cidade reservou à Carioca do Campo. Prostituiu-se, sem culpa. Porque culpada não é ela, são os filhos dela.