Cristo das águas-vivas

O céu ainda pingava no amanhecer da quarta-feira de cinzas, quando o Cristo de Guaratuba resolveu descer à praia para tomar um banho de mar. Com a orla recendendo fluídos de ressacas, ele baixou um dos braços, deu um primeiro passo, outra pernada em direção à escadaria do morro e, assim, cauteloso para não escorregar, o Salvador desceu à areia. Afundou os pés na água do mar, naquele mesmo mar que estava cansado de admirar das alturas, com os olhos no horizonte, noite e dia, inverno ou verão, fizesse sol ou chovesse a cântaros.

“Ai, meu pé!” – gritou o Redentor.

Com a marola batendo no joelho, Cristo retornou à areia sentindo o ardume que lhe queimava as pernas. “Ai, Ai, como arde!”. Uma senhora largou o cachorrinho fazendo pipi e correu em seu socorro: “Calma, meu filho, vou lhe ajudar!”.

Aqui e ali, ela examinou a perna do Nazareno: era uma água-viva que, não se sabe se por natureza ou devoção, beijou os pés do Todo-Poderoso de Guaratuba. Dor assim Jesus só havia sofrido quando da crucificação. Mas Ele é poderoso, dispensou a garrafa com vinagre que a idosa lhe oferecia e seguiu em frente, com os pés descalços a espargir a água do mar, o que lhe causava uma sensação pecaminosa a lhe explorar o corpo.

Mais adiante, o Cristo de Guaratuba ficou encantado vendo alguns abençoados meninos jogando futebol. Quando a bola veio em sua direção, Ele posicionou o corpo um pouco de lado, tomou distância, e com o pé direito fez o goleiro agradecer o chute certeiro a lhe encaixar no peito.

“Tio, não entre nessa água!” –gritou o menino, quando o Cristo estava prestes a retornar ao mar, com as ondas já lhe molhando as vestes.

“Ora, meu filho? Se Moisés enfrentou as águas do Mar Vermelho, não teria qualquer filho de Deus a coragem de mergulhar nesse mar de águas-vivas?”.

“Tio, o senhor não sabe ler? Está escrito na placa, esse pedaço de praia é impróprio para o banho!”.

“Filho, onde eu poderia então nadar em águas seguras e límpidas?”

“Tio, só mesmo por milagre!”.

Nem mesmo na Ilha do Mel?”.

A lotação da ilha deve estar esgotada. E a fila do ferryboat é demorada demais da conta”.

“Doce criatura, onde poderia então encontrar água, que minha sede é tanta?”.

“Pelo jeito o senhor é turista novo por aqui. Não se arrisque a beber água da torneira, tio!”.

“Muito obrigado, filho. Não devo dizer, mas dessa água não beberei!”

O Cristo de Guaratuba voltou ao alto onde sempre esteve, perdoou a nós pecadores e, em nome do Pai, do Filho e Espírito Santo, abençoou os veranistas que pegavam o caminho de volta pra casa: O Cristo de Guaratuba não sou eu. Somos todos!”.