O arquiteto Jaime Lerner tem no seu repertório de “causeur” uma divertida analogia entre as cidades e as mulheres. “Na cidade, não há sapo que não possa se transformar em príncipe. Depende do beijo da princesa”, diz o ex-prefeito que despertou Curitiba, a Bela Adormecida dos anos 70.

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Semanas depois de Jaime Lerner refletir no espelho da imaginação a mulher que toda cidade é, por coincidência o escritor Luis Fernando Verissimo fez a mesma reflexão na crônica Duas cidades.

Escreveu o saxofonista preferido do urbanista: “O final da Bíblia poderia ter o mesmo título do livro de Charles Dickens: é uma história de duas cidades. O apocalipse trata do Juízo Final e do novo céu e da nova terra que virão, mas as grandes personagens do drama são Babilônia e Jerusalém. Personagens marcadamente femininas: Babilônia, a grande prostituta, “vestida de linho fino, de púrpura, de escarlate e adornada com ouro e pedras preciosas e pérolas”, cujos pecados se acumularam até o céu e provocaram sua destruição, e Jerusalém, a “mulher do Cordeiro” que desce do céu, “como uma esposa ataviada para seu marido”, no advir dos novos tempos”.

“Jerusalém, segundo a Bíblia, “tinha a glória de Deus, e a sua luz era semelhante a uma pedra preciosíssima, como a pedra de jaspe, como o cristal resplandecente”. Ou seja, a virtuosa Jerusalém não brilhava menos que a pecaminosa Babilônia. Não era menos feminina”.

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“As cidades são sempre mulheres, se Babilônia ou Jerusalém depende de quem as descreve. A literatura está cheia de cidades evocadas com paixão ou ressentimento geralmente vistas do exílio, ou de uma distância que as mitifica e há sempre algo de amoroso ou desiludido na evocação, sentimentos associados com a perda de um território afetivo, maternal. Cidade é sempre mãe, seja prostituta de escarlate ou mulher de Cordeiro. Só muda o modo como ela é lembrada”.

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Talvez tenha sido um sopro edipiano que tenha levado a mesma inspiração a Lerner e Verissimo, sendo os dois confessadamente apaixonados pelas cidades que lhes serviram de útero, Porto Alegre e Curitiba. Paixões que ambos repartem com Paris e Nova York, suas amante de longa data.

Especialmente Jaime Lerner, que estudante de arquitetura em Paris conheceu ainda bem jovem a fêmea com as curvas sensuais do Sena: “Paris é chique, uma mulher sempre vestida para um casamento. Nova York é uma mulher toda tatuada”.

Sendo que a virtuosa Jerusalém não brilhava menos que a pecaminosa Babilônia, não era menos feminina, Roma faria o papel de Catherine Deneuve no filme A Bela da Tarde, a madona e a prostituta entre o nascer e o pôr-do-sol. No parecer de Lerner, “Roma é mulher bonita e não se importa em mostrar a idade que tem, suas ruguinhas, as marcas do tempo”.

Como não existe pecado abaixo do equador, Lerner observa com olhos pródigos a lascívia das latinas: “Buenos Aires é uma mulher com um desfiado na meia arrastão, bebe um café no Tortoni e não tem dinheiro para pagar. São Paulo, uma mulher que exagerou no botox. Salvador é uma mulher vestida de branco, saindo do mar. Rio, de barriguinha de fora”.

Com o olhar de Édipo, e se revelando irmão de Dalton Trevisan por parte de cidade, Jaime Lerner assim descreve aquela que lhe deu a luz e o brilho: “Curitiba é uma madame de cinta-liga na coxa, com belo naco de carne à mostra”.

Como profundo “conaisseur” de cidades (e de mulheres, portanto), Jaime Lerner esqueceu que a madame de cinta-liga com a coxa à mostra, também exibe a face modelada por cirurgias plásticas e no penteado o fatal topete.

Em suma: Curitiba é a madame do Batel, com sapatos Dior sujos de lama da periferia. É uma bela balzaquiana com topete de colegial, a cidade em busca da eterna fonte da juventude. Fonte esta há muito projetada pelo próprio Lerner.