Caso de polícia

Como de costume, Dr. Furibundo chegou em casa soltando fogo pelas ventas. Dona Pureza, que quando escuta o marido batendo as portas suspira aliviada – “É ele, o mesmo de sempre!” -, tratou de guarnecer acepipes para o pôr-do-sol, enquanto o filho Meditabundo já estava no segundo uisquinho.

“Eu fico pisando em ovos para que não pisem nos meus!” disparou Furibundo “Mas assim já é demais”. E entregou uma carta para o Meditabundo:

– Você que é advogado, leia essa correspondência. Recebi de um velho amigo gaúcho, de São Leopoldo, onde ele me repassa carta aberta que um cidadão local está enviando a todo o Brasil.

O advogado Meditabundo afastou o uísque e passou a ler em voz alta a missiva do empresário Silvino Geremia:

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“Acabo de descobrir mais um desses absurdos que só servem para atrasar a vida das pessoas que tocam e fazem este país: investir em educação é contra a lei. Vocês não acreditam? Minha empresa, a Geremia, fabrica equipamentos para extração de petróleo, um ramo que exige tecnologia de ponta e muita pesquisa. Disputamos cada pedacinho do mercado com países fortes, como os Estados Unidos e o Canadá. Só dá para ser competitivo se eu tiver pessoas qualificadas trabalhando comigo.

Com essa preocupação criei, em 1988, um programa que custeia a educação em todos os níveis para qualquer funcionário, seja ele um varredor ou um técnico. Este ano, um fiscal do INSS visitou a empresa e entendeu que educação é salário indireto. Exigiu o recolhimento da contribuição social sobre os valores que pagamos aos estabelecimentos de ensino frequentados por nossos funcionários, acrescidos de juros de mora e multa pelo não recolhimento ao INSS. Tenho que pagar 26 mil reais à Previdência por promover a educação dos meus funcionários? Eu acho que não. Por isso recorri à Justiça. Não é pelo valor, é porque acho essa tributação um atentado. Estou revoltado. Vou continuar não recolhendo um centavo ao INSS, mesmo que eu seja multado 1000 vezes. O Estado brasileiro está falido. Mais da metade das crianças que iniciam a 1.ª série não conclui o ciclo básico. A Constituição diz que educação é direito do cidadão e dever do Estado. E quem é o Estado? Somos todos nós. Se a União não tem recursos e eu tenho, acho que devo pagar a escola dos meus funcionários. Não estou cobrando nada do Estado. Mas também não aceito que o Estado me penalize por fazer o que ele não faz. As leis retrógradas, ultrapassadas e em total descompasso com a realidade devem ser revogadas. A legislação e a mentalidade dos nossos homens públicos devem adequar-se aos novos tempos. Com esse alerta temo desestimular os que ainda não pagam os estudos de seus funcionários. Não é o meu objetivo. Eu, pelo menos, continuarei ousando ser empresário, a despeito de eventuais crises, e não vou parar de investir no meu patrimônio mais precioso: as pessoas. Eu sou mesmo teimoso!” (Silvino Geremia, diretor-presidente)

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– A carta é por aí afora disse o advogado Meditabundo ao pai Furibundo Só que esse não é apenas um caso para advogados: é um caso de polícia! Tem que mandar prender o agente fiscal que foi na empresa do Silvino.

Furibundo, com os eflúvios do primeiro uísque, completou de seu feitio:

– Prender, dar uma boa sova e mandar ele tributar a mãe dele. E depois fazer esse fiscal decorar a vida do Sarney que vamos fazer sabatina pública. Se as respostas forem corretas, ele vai ganhar um certificado. Mas se errar, vai ser demitido. Isso é salário indireto, pago a criaturas imorais!

– A ignorância é nosso grande patrimônio nacional! emendou Meditabundo, com mais uma de suas frases prontas.

Dr. Furibundo Derrier guardou a missiva no bolso e, depois de olhar para o céu, serviu-se de mais um uísque:

– Como dizia meu falecido pai, depois de conhecer o Brasil: não tente pagar os impostos com um sorriso. Eles preferem em dinheiro!