Estamos vivendo sob o toque de recolher, sem ninguém a nos socorrer no cair da noite. Dizem as pesquisas de opinião, muitos se recolhem ao anoitecer com medo da polícia e a grande maioria da população aponta como inimigo público número um o Bicho-Papão.

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Os sociólogos já estudaram esse maligno Bicho-Papão. De minha parte, prefiro aprender com o escritor Eduardo Galeano: “As mais famosas histórias infantis, obras terroristas, também merecem um lugar no arsenal das armas adultas contra as pessoas miúdas. João e Maria avisam que você vai ser abandonado pelos seus pais, Chapeuzinho Vermelho informa que cada desconhecido pode ser o lobo devorador e a Gata Borralheira obriga você a desconfiar das madrastas e suas filhas. Mas entre todos os personagens, o Bicho-Papão é o que com maior eficácia ensinou a obediência e difundiu o medo nas hostes infantis. O Bicho-Papão teve por modelo um ilustre cavalheiro, Gilles de Rais, que havia lutado ao lado de Joana d’Arc. Esse senhor de muitos castelos foi acusado de violar, torturar e matar as crianças errantes que perambulavam pelas suas herdades à procura de pão. Submetido à tortura, Gilles confessou centenas de infanticídios, com detalhados relatos de seus deleites carnais. Acabou na forca.”

Em Curitiba, as histórias da carochinha são de deixar os petizes de cabelo em pé. No mapa da insegurança pública, a Igreja de Guadalupe é a matriz da zona portuária de Curitiba. É o cais de desembarque da região metropolitana e o endereço do “pátio dos milagres” do Detran, com filas de dobrar quarteirões. Nas adjacências da Rua João Negrão, alcançando a Rua Das Flores, as lojas de 1,99 transformaram aquilo num oceano de pechinchas onde impera um monstro da melhor tradição monstruosa, o Dragão da Galheta. Oriundo de Paranaguá, o monstro marinho emerge na zona portuária de Curitiba e, ao anoitecer, costuma comer criancinhas errantes. Suas características são bem conhecidas: crinas crespas, orelhas de burro, olhos esbugalhados, dentes cortantes e língua de serpente. Cada dedo mede 20 centímetros, as unhas são iguais às do Zé do Caixão e a cauda mede 20 metros. Grita como um lobo e as grossas escamas fedem mais que gambá.

Um pouco além da zona portuária, a Rua Riachuelo e seus afluentes que deságuam no Passeio Público. Dos logradouros mais sinistros do centro, a Riachuelo é o parque de diversões do Vampiro de Curitiba. Antigamente, a Rua Riachuelo chamava-se Carioca do Campo, porque ali havia uma bica d’água. Anos mais tarde, depois da Guerra do Paraguai, a simpática Carioca do Campo passou a ser a Rua Riachuelo de hoje: corredor do crack, ninho do baixo meretrício que ronda o Passeio Público.

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Triste destino a cidade reservou à Carioca do Campo. Prostituiu-se, sem culpa. Porque culpada não é ela, são os filhos dela.

Apesar do Chapeuzinho Vermelho, com suas estatísticas, apontar o Lobo-Mau como o principal agente do crime desorganizado, a maioria dos curitibanos não tem nenhuma dúvida: é o Bicho-Papão o responsável pela nossa insegurança urbana, a origem do toque de recolher.

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Ao Bicho-Papão há muito nos rendemos. Ao anoitecer, nossas ruas e avenidas ficam vazias com medo do Bicho-Papão e, no toque de recolher, nos refugiamos nos automóveis à procura do bom abrigo do shopping. Os pais, aflitos, imploram: “Não desliga o celular porque o Bicho-Papão vai te comer!”

Os costumes mudaram, o ilustre cavalheiro Gilles de Rais acabou na forca e, em época recente, quem comia meninos errantes eram os comunistas. Hoje, todo cidadão é tratado como criancinha.