Barulhos da cidade

Aos tantos inconformados com os barulhos de Curitiba (do trem que apita sem porteira no meio da noite ao caminhão de lixo), palavras de Konrad Lorenz, zoólogo austríaco que fazia
estudos comparativos entre o comportamento humano e animal: “A necessidade cada vez mais aguda de ruído só se explica pela necessidade de sufocar alguma coisa”.

Basta um feriadão para o curitibano sentir no ouvido como a cidade sai do sufoco. O trem continua apitando sem porteira e o caminhão do lixo segue com sua rotina, é verdade. Em compensação, naqueles longos intervalos de uma cidade vazia (lembrando a fantasmagórica Cidade do México se escondendo da epidemia) escutamos rumores que soam como música.
“O silêncio é um espião”, dizia Mario Quintana.

Nesta Curitiba muda e taciturna, quando a maioria foge do barulho serra abaixo ou serra acima, é quando podemos escutar perfeitamente os melhores ruídos da cidade, com ouvidos de espião.

Lá do Alto da Rua XV, basta apurar a audição para sentir os passos do escritor subindo a ladeira com as compras do supermercado, três sacos plásticos com verduras, pão e leite. Ao chegar à porta de casa, o barulhinho do homem de olhos cansados tentando enfiar a chave no buraco da fechadura: crac, cric, crac… Ufa! Ele conseguiu!

Descendo a Rua XV de Novembro, algumas quadras à direita da Reitoria, vem de um prédio baixo e despojado o barulho daquele outro escritor abrindo (grruum!) a janela. Fecha a janela (grruum!), volta a abrir a janela (grruum!), e o bom assunto não entra. De repente, o grito de um torcedor com a bandeira do Furacão.

A janela abre (grruum!) súbito: talvez, quem sabe, Cristóvão Tezza comemore na crônica o Atlético campeão.

Daqui do centro da cidade ouça um telefone tocar na fronteira do bairro Boa Vista com o Tingui. Apure o ouvido, é no Palacete do Tico-Tico, de número 184.

– Quem está falando?
– Wilson Bueno!
– O escritor?
– Sim!
– Desculpe, foi engano: eu precisava falar urgente com o poeta Wilson Bueno. Ligo outro dia!

Só mesmo no silêncio da cidade muda podemos constatar como os escritores são barulhentos. Não tanto quanto os músicos, claro, porque eles guardam a diferença na pele:
o roqueiro exibe tatuagem, o escritor carrega cicatriz.

***

É suave a noite vazia. Num bar do Largo da Ordem dois poetas bebem tragos e versos. Além deles, a solidão: só o garçom esfrega o balcão com pano, como querendo fechar e levantar as cadeiras.

Nisso, o trote de um cavalo ecoa por todo o Setor Histórico. De princípio ao longe, os ferros dos cascos se aproximam (po-co-tó… po-co-tó… PO-CO-TÓ… PO-CO-TÓ) até parar na porta do bar. O belo animal entra (po-co-tó…), se aproxima do balcão, pega o garçom pelo colarinho e ordena:
– Quero um balde, três cervejas e uma garrafa de Martini doce!
Os dois poetas se entreolham, enquanto o garçom corre para pegar as bebidas. Sobre o balcão, mistura tudo no balde e serve.

O cavalo relincha de satisfação. Com as duas patas segura o balde, como se fosse um copo de chope e bebe tudo de um só gole: blug-blug-blug-blug-blug! Relincha outra vez, limpa os beições com os pelos da pata direita, se apruma com as quatro e sai lentamente (po-co-tó… po-co-tó… po-co-tó).

Com os olhos esbugalhados, o garçom escondido sai de trás do balcão, acompanha o trote descendo as escadas da Galeria Júlio Moreira, para ressurgir atrás da Catedral. Na Rua do Mijo, o cavalo estanca, se alivia num grande borbulho e (po-co-tó… po-co-tó) some na garoa da Praça Tiradentes.

Ao voltar para o interior do bar, o atônito garçom vai até a mesa das outras duas testemunhas oculares e pergunta:
– Vocês já viram uma coisa dessas?
Um dos poetas responde, o outro confirma:
– Cerveja com Martini doce? Nunca vi uma coisa dessas!
Depois disso, o apito do trem acorda meia cidade!