Assim rasteja a humanidade

No campo de concentração de Auschwitz existiam dois meninos que eram muito, muito amigos. Com os nazistas derrotados, os dois garotos fugiram pelo bosque e se separaram. Passaram-se os anos, Jacob foi para os Estados Unidos e Moshe, depois de passar por um campo de triagem na Alemanha, foi tentar recomeçar a vida na Argentina.

Jacob estudou Economia em Harvard, passou pelo FMI, pelo Banco Mundial e mais recentemente foi nomeado membro do Grupo Intergovernamental de Especialistas sobre a Mudança Climática (IPCC). Na Argentina, Moshe estudou administração e, depois de alguns empreendimentos derrotados pelas sucessivas crises econômicas, lutou na clandestinidade contra a ditadura, passou alguns anos na cadeia, participou de movimentos pelos direitos humanos, virou operário e foi sobreviver à miséria numa favela em La Matanza. Líder sindical, foi indicado pelos companheiros sindicalistas e viajou à Dinamarca para lutar pelo meio ambiente.

Nessa 15.ª Conferência das Partes da Convenção Marco das Nações Unidas sobre Mudança Climática (COP-15), Jacob foi um dos organizadores que tentaram levar os governos a chegar a um acordo para suceder o Protocolo de Kioto, assinado em 1997 e em vigor desde 2005, e estabelecer metas para a redução de gases para depois de 2012.

Quando Jacob chegou a Copenhague, ao lado das altas autoridades internacionais da COP-15, seguiu a bordo de uma limusine para o local onde a cúpula climática faria a primeira entrevista coletiva à imprensa. No meio do caminho, entre o aeroporto e o hotel muito bem climatizado, o automóvel oficial do governo dinamarquês foi cercado por uma multidão de piqueteiros protestando contra o aquecimento global. Os manifestantes levavam faixas pedindo ação imediata em frases como “A natureza não pode fazer acordo”, “Não temos plano B” e mensagens defendendo direitos de povos indígenas e de países pobres.

Jacob estranhou a manifestação, mas foi informado que o problema seria solucionado em poucos minutos. Enquanto isso, imagens de televisão mostravam ao mundo os policiais colocando os manifestantes detidos sentados em filas na rua, com as mãos amarradas atrás das costas. Apesar de o ato ter sido pacífico, a multidão atirou tijolos contra a sede da Bolsa de Valores dinamarquesa e os policiais entraram em ação para realizar o que chamaram de “detenções preventivas”. A polícia informava que a manifestação contava com até 30 mil participantes. Mas organizadores diziam que mais de 100 mil pessoas estavam nas ruas.

Uma fonte próxima do governo dinamarquês dizia que a maioria dos detidos seria mantida por até quatro horas, enquanto outros seriam levados a juízes dentro de 24 horas. Entre participantes anônimos de todo o mundo, fantasiados de ursos polares, marcianos e outros personagens, estavam personalidades como a modelo Helena Christensen, o arcebispo Desmond Tutu, o líder da igreja anglicana, Rowan Williams e a ex-comissária para direitos humanos da ONU Mary Robinson.

Jacob olha pela janela do carro e, entre os manifestantes e a tropa de choque do exército resolvendo a situação com cassetetes e bombas de gás lacrimogêneo, reconhece Moshe.

– Moshe? Não acredito…

E não consegue conter as lágrimas ao ver seu amigo de infância tão velho, fraco, miseravelmente vestido e vertendo sangue da cabeça aos pés. Então, apesar das advertências do corpo de segurança, Jacob desce da limusine, vestido com seu traje Armani de U$ 3.000, e caminha entre os piqueteiros, a passos firmes. Atravessa a turba, até chegar ao objetivo. Encara o amigo de infância no campo de concentração e grita:

– Moshe!!!???!… És tu, meu querido amigo?

– Sim, eu me chamo Moshe! E quem é você, carajo?

– Eu sou Jacob! O Jacob de Auschwitz! Não me reconheces?

– Ah… Jacob de Auschwitz… Ah!!!

Enquanto o abraça, emocionado, Moshe completa:

– Ah, Auschwitz!!!!… Bons tempos aqueles!