Assalto ao mulo pagador

Na semana passada rememoramos o “Assalto ao trem de passageiros”, aventura de um certo Coronel Fabrício, depois da Guerra do Contestado, relatada pelo escritor Arnoldo Monteiro Bach. Também pesquisador do Contestado, o jornalista Jorge Narozniak (da RPC) lembra de outro episódio da época: o assalto ao mulo pagador.

Além de competente e justamente respeitado pelos colegas de profissão, Jorge Narozniak é ainda um jornalista atento com a nossa história. De tantas reportagens e pesquisas já realizadas na região do Contestado, e de tanto ler sobre o conflito, Narozniak reconhece que Santa Catarina ganhou a guerra editorial sobre o tema. No jargão esportivo, os escritores catarinas deram uma lavada: 10 x 3 seria o placar. Sem contar que o cineasta Sylvio Back (A Guerra dos Pelados) é catarina de Camboriú, nascido em Blumenau por falta de maternidade no balneário.

Bem lembrado por Jorge Narozniak, o assalto ao mulo pagador é contado pelo historiador, jornalista e professor universitário Nilson Thomé, um dos criadores da Universidade de Caçador (SC).

Para situar o episódio, o assalto aconteceu depois que o Governo Imperial começou a construção, em 1890, da Estrada de Ferro São Paulo – Rio Grande, com a intenção de fixar imigrantes nas terras devolutas dos campos do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina, bem como nos sertões do Paraná e de São Paulo. Nos 20 anos da construção da Estrada de Ferro Norte-Sul, uma série de escândalos administrativos e financeiros gerou uma significativa leitura da sigla Efsprg: “Estrada Feita Só Para Roubar o Governo”.

A construção do trecho catarinense da estrada de ferro sacudiu os hábitos e os costumes da região, com a presença de 8 mil trabalhadores braçais, oriundos do Rio de Janeiro, de Pernambuco, da Bahia, de São Paulo, recrutados inclusive em portos e em prisões. Na região corria muito dinheiro, inclusive cédulas de 500 mil réis até então desconhecidas pelos moradores das barrancas do Rio do Peixe. Com dinheiro farto e descanso semanal (o que não ocorria no tempo dos escravos) apareceram as bebedeiras, a prostituição e os assaltos. As noites nos acampamentos eram de farras desenfreadas. O pior acontecia nos primeiros dias de pagamento, quando eram frequentes os roubos e os assassinatos, com os cadáveres boiando em águas barrentas, ou sepultados embaixo dos trilhos.

Como conta Nílson Thomé, “a estrada de Ferro São Paulo – Rio Grande foi construída pelo sistema de “empreitada”, hoje conhecido como “terceirização”: “um grupo de contratantes executa um determinado trecho e se responsabiliza pelos salários dos trabalhadores à medida que estes forem completando as tarefas que receberam. Um tal Zeca Vacariano contrata dois trechos de trilhos. Mas ao terminar a empreitada não consegue pôr em dia os salários em atraso. O empreiteiro inadimplente associa-se a outros comparsas e arma um assalto ao funcionário da estrada que a cada final de mês percorre os trechos em construção para efetuar os pagamentos dos trabalhadores. Escondidos na floresta, winchester em punho, os membros da quadrilha esperam a passagem do mulo pagador:

– É ele! Mas está acompanhado por dois capangas!

Matam os dois e ferem o pagador. Os assaltantes levam 360 contos. Um dinheiro sem tamanho. Mais de 15% da arrecadação do Tesouro do Estado, em 1910. Tropas federais e estaduais, bem como o corpo de segurança da empresa construtora, vasculham a região para caçar Zeca Vacariano e os 360 contos. Tempo gasto por nada. A floresta fechada não devolveu a quadrilha, muito menos o dinheiro roubado”.

***

O golpe gerou um atraso de dois meses na conclusão da estrada, bem assim como acontece hoje. Só que atualmente empreiteiros como Zeca Vacariano não recorrem mais ao mulo pagador. Com obras superfaturadas, distribuem dinheiro de plástico aos peões.