As rainhas da Serra do Mar

Aproveitando que Carnaval de Curitiba ganhou algumas mudanças – para a folia continuar a de sempre -, bom seria a ressuscitar o Baile dos Enxutos no Operário. Ou, Sociedade Beneficente Operária, ali no Alto de São Francisco. Nos anos 1970 vinham travestis de todo o Brasil disputar suas belezas na passarela do Ópera-Rio, sob aplausos de meia Curitiba curiosa. Gente fina, no domingo de Carnaval, senhores abandonavam esposas nos salões chiques, protegidos por máscaras, fechados em camarotes. Participar do júri, glória maior, só mesmo nome graduado e de muito pistolão.

Sem precisar o ano, deu-se então a maior das tragédias. Não com os foliões espremidos no salão, mas sim com um grupo de travestis, tradicionais concorrentes ao título. Rainhas que vinham do Sul, num ônibus pinga-pinga especial. Partia de Pelotas, passando por Laguna, completando a lotação em Florianópolis. Vinham no “toco duro” (epa!), na maior felicidade, em busca do cobiçado título de “Rainha do Baile dos Enxutos”, então o maior evento gay do Sul do Brasil.

No alto da Serra do Mar deu-se a tragédia, na rodovia então de pista única e conhecida como o “Corredor da Morte”. O ônibus foi abalroado por caminhão Mercedes de cara chata, placa de Passo Fundo, e mergulhou no precipício. Um horror. Entre as ferragens e galhadas de quaresmeiras e manacás, corpos mutilados salpicados de lantejoulas, confetes e serpentinas. O sangue se confundia com o carmim dos batons.

Quando chegou socorro, o silêncio era total na barroca. Aparentemente, não se ouvia nenhum sopro de vida. Só aparentemente. De repente, um grito de pavor veio do fundo do ônibus e descobriu-se então uma sobrevivente: nome artístico Vanessa, de batismo Venâncio Borges Esteves, de tradicional família pelotense. Rainha de muitos carnavais, já tinha arrebatado títulos de Porto Alegre a Floripa, mas não tinha ainda sido coroada em Curitiba.

Quando Vanessa foi atendida no Hospital Cajuru, em Curitiba, o filme do desastre lhe veio aos olhos: Pâmela, Priscila, Brigite, Daphne, Samantha, Géssika, Audrey, Marlene, Jennifer, todas esfaceladas, esvaindo-se em sangue num amontoado de fedorentas poltronas de napa, miçangas e fantasias.

No leito do hospital, Vanessa fez a promessa: vida de travesti, nunca mais. Adeus perucas e bofes. Sua vida tomaria outro rumo. Assim foi: assumiu o nome de batismo, não mais voltou a Pelotas, comprou um terno de tergal nas lojas Hermes Macedo e, enfim, se regenerou. Bofes, nunca mais. Quando vinha o traiçoeiro desejo, se deixava horas embaixo numa ducha gelada, até passar.

Muitos anos depois, uma pequena nota no obituário dos jornais registrava o falecimento de Venâncio Borges Esteves, 58 anos, solteiro, representante comercial. Reabilitado e com pecados quitados perante Deus, Venâncio chegou de alma limpa no Céu. Em lá chegando, ó destino cruel! Quem Venâncio encontra? Encontra justamente sua melhor amiga e companheira de tragédia na Serra do Mar, a rainha Pâmela. Linda e bem feliz nos braços de um arcanjo sarado. Ela pula do colo do anjo e corre em direção de Venâncio:

– Vanessa, minha querida, quanto tempo! Maravilha que você veio!

– Pâmela, tenha modos! Estamos no Céu e meu nome não é mais Vanessa! E não estou mais em pecado!

Pâmela então envolve o arcanjo pela cintura, lhe dá um beijo no pescoço e sussurra no ouvido de Venâncio:

– Sabia, fofa… não é pecado!!!

– Não é pecado?

– Nem pecado venial!