As Mocinhas da Cidade (2)

No início de dezembro, as mocinhas da cidade sentavam na soleira do portão do Colégio Cajuru, à espera de embarcar para casa em férias. Mocinha prendada, a segunda parte das memórias da escritora Maria Thereza Brito de Lacerda: Em Busca do Colégio Cajurú perdido, à maneira de Dalton Trevisan.

“Não canto o Cajurú da Rainha das Missões, seu nome escrito lá no alto do altar porque papai podia mandar dinheiro para os pobres chinesinhos obtendo o milagre da boa nota para a filhinha. Não canto o Cajurú da missa diária, da prece antes e depois do café da manhã, da reza antes e depois das aulas, da ação de graças antes e depois do almoço, da oração antes e depois das aulas e antes e depois do recreio, da ação de graças antes e depois do café da tarde, antes e depois de dormir. Nem o da calma pulguenta e dos pernilongos que invadiam o cortinado, do avental preto (cadê toalha para enxugar as mãos) cheirando a cachorro molhado, o do cabeção e punhos engomados azul-claro com sutache branco.”

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“Não canto o Cajurú da água sorvida da mão em concha, embaixo da torneira, as narinas aspirando o cheiro da privada mais próxima, nem o Cajurú das aulas de ginástica em manhãs de bruma ou de sol, o professor de polainas e as alunas de calção preto cobrindo os joelhos, por cima da meia preta de algodão e por baixo da saia azul-marinho de pregas, mais a blusa e o avental preto de mangas compridas (e-um-e-dois-três-e-quatro-e-um-e-dois-e-três-e-quatro, inspirar, expirar). O Cajurú que eu não canto é o do padre-inspetor desmanchando as escandalosas pernas cruzadas das mocinhas com um pontapé, nem o do esmalte de unhas raspadas com gilete (com unhas pintadas você não assiste à aula) nem o dos cabelos crespos e rebeldes que era preciso alisar à força para poder responder ao exame oral.”

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“Canto o Cajurú do ensino obrigatório de francês e da frase rapidamente aprendida, passaporte seguro para o passeio durante as aulas: massér-vulé- vu-me-permetre-de -sortir-sil-vúplé. O Cajurú das aulas de Boas Maneiras (misture álcool, carbonato de sódio e alvaiade peneirada, vascoleje e limpe a prataria uma vez por mês). Canto o Cajurú da paródia da Bíblia lida às escondidas, a história do elefante que caiu da Arca de Noé e correu atrás do matinho para fazer pipi, a adolescente rindo descontroladamente toda a tarde até ser mandada para a enfermaria.”

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“Não canto o Cajurú do retiro espiritual, a fúria dos quatro Cavalheiros do Apocalipse e mais todos os raios, maldições e o fogo do inferno caindo sobre as cabeças pecadoras contra todos os dez mandamentos e de todos os pecados, venial, mortal, capital (a preguiça de pular da cama, o orgulho da nota dez, a inveja de quem está saindo, a avareza de esconder o pedaço de chocolate que sobrou, a gula de comer sozinha toda a lata de marmelada branca, a raiva do castigo injusto, a luxúria de não lavar a mão que o namorado tocou), minha culpa, minha máxima culpa, Não canto o Cajurú da missa, confissão, comunhão, terço, novena, via-sacra, jaculatórios, ladainha, as indulgências plenárias capitalizando para garantir a eternidade feliz. Não canto o Cajurú do sacrifício pelas almas do purgatório e a remissão dos pecados (não chupar balas, não conversar na fila, rezar de braços abertos ajoelhada no milho).”

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“Canto o Cajurú, com amor eu canto, o Cajurú da amizade para toda a vida, do jogo de caçador na tarde ensolarada, do tricô nos recreios, dos piqueniques atrás da gruta, das festas de fim de ano, da emoção coletiva pela Paris libertada, allons enfants de La Patrie. Mas não canto, definitivamente, não canto, o hino cafona: Salve, Salve, amado Cajurú / Templo de estudo e caridade / Braseiro intenso de instrução / Por ser a luz da mocidade / Juramos-te dedicação.”