No início de dezembro, as mocinhas da cidade sentavam na soleira do portão do Colégio Cajuru, à espera de embarcar para casa em férias. E, enquanto Nhô Belarmino e Nhá Gabriela cantavam As mocinhas da cidade, não longe os rapazes suspiravam pelas princesas daquele colégio que mais lembra um castelo.

continua após a publicidade

Em Curitiba, a mais perfeita versão das mocinhas da cidade (que são bonitas e dançam bem) foram as alunas do Colégio Cajuru. Majestosamente erguido no bairro Cajuru que quer dizer “boca da mata” – aquele imponente conjunto de inspiração neogótica é uma referência do bairro, além de testemunha de vida da irmã Julia de São José de Chambéry (1882- 1962), nascida em Les Chapelles, na França.

Pode-se dizer que, ao longo do século XX, as mocinhas mais prendadas da cidade atravessaram aquele solene portão. Especialmente duas delas se tornaram ícones do Paraná: a poeta Helena Kolody, a bela sempre solteira, e a escritora Flora Camargo Munhoz da Rocha, esposa do ex-governador Bento Munhoz da Rocha Netto.

Bela e prendada também é a escritora Maria Thereza Brito de Lacerda. Embora nascida na Lapa, de onde nunca saiu espiritualmente, Thereza tem entre suas obras uma jóia rara da literatura paranaense: A lida da goiabada, reunião de contos e crônicas.

continua após a publicidade

Também pesquisadora histórica, Thereza escreveu em 1982 um delicioso depoimento sobre os seus tempos de Colégio Cajuru, para o Boletim Informativo da Casa Romário Martins em homenagem à “Mère Julia do Cajuru”. “Derrubando mitos” é subtítulo da crônica à maneira de Dalton Trevisan. Na época, Thereza duvidava de sua publicação, de tão irreverentes e implacáveis suas memórias.

As mocinhas da cidade de Curitiba não são apenas bonitas e dançam bem. Pensam e escrevem muito bem, como veremos com prazer.

Em Busca do Colégio Cajurú perdido, à maneira de Dalton Trevisan

continua após a publicidade

O Colégio Cajurú das órfãs e juvenistas e não o das pequeno-burguesas, internas ou semi-internas rechonchudas e sorridentes, eu canto. Colégio Cajurú onde o caminho da gruta é mais fresco e mais verde. Colégio Cajurú que canto. Cajurú da juventude triste carregando, por toda a semana, os cacos de louça da xícara quebrada (assim você aprende a prestar atenção no que faz). Cajurú das órfãs transportando, duas a duas, as enormes latas de lixo, descascando batatas e rezando (primeira AveMaria, segunda Ave-Maria, até chegar à trigésima porque as mãos não podiam segurar o terço), lavando as casinhas, já de madrugada, sem conseguir apagar os grafitos (Zezé, eu te amo, bu……….., m……..) Este Cajurú eu canto.

***

O Colégio Cajurú do refeitório barulhento, todas as bocas se fechando quando circulava, como um vento gelado, o aviso terrífico de que a freira gordinha e baixinha se aproximava. O Cajurú da música que tomava o corredor comprido, dó-ré-mi-fá-sol-lá-si-dó-si-lá-sol-fá-mi-ré-dó, cachorro-vai-cachorro-vem, a freirinha pálida e esquálida fechada na sala estreita ensinando piano. Não canto o Cajurú das mocinhas em flor executando o Pour Elise e a Marcha Turca a quatro mãos para o papai e a mamãe, nem o das visitas vigiadas no frio parlatório.

***

O Cajurú do “Benedicamus Domino, Deo gratias” gritado no dormitório às 6 da manhã, a luz acesa na cara para acordar as dorminhocas. O Cajurú dos dois banhos semanais (de imersão e de camisola de chita); do treinamento para o desfile da Semana da Pátria, pam, pam, pam, esquerdo, pam, pam, pam, esquerdo, acertem o passo. O Cajurú da correspondência paterna violada e da cartinha-resposta convencional e vigiada (queridos pais, estou muito contente, tirei 8 em matemática e 10 em francês, recebi a goiabada que tenho oferecido às minhas colegas). O da confissão obrigatória (menti, desobedeci, falei mal dos outros, tive maus pensamentos e maus desejos), monsenhor Dunand, a auréola invisível brilhando na calma cabeça branca, gordo e bonachão abençoando: é uma santa, é uma santa, reze três aves-marias, este Cajurú eu canto.

(Domingo tem mais)