A pelerine do jornalista

Na noite de terça-feira passada o jornalista Adherbal Fortes de Sá Júnior tomou posse da cadeira de Emiliano Perneta, na Academia Paranaense de Letras. Foi recebido pelo acadêmico Ernani Buchmann. A cerimônia durou apenas hora e meia. Podia durar mais, horas e horas, porque fomos presenteados com dois brilhantes textos, na voz dos autores.

?Não posso garantir a qualidade do discurso – foi este o primeiro parágrafo de Buchmann -, mas, pelo menos, prometo não fazer como o escritor Álvaro Lins, que ,ao assumir sua cadeira na Academia Brasileira de Letras, mesmo tendo o presidente da República na mesa de autoridades, falou por quatro horas e meia. A solenidade terminou às duas horas da madrugada. Também não poderei fazer como fiz certa feita, no Clube Curitibano, ao ser o último orador chamado ao palco, às 23:30. Os garçons estavam com o jantar nas bandejas, prontos para entrar. Meu discurso teve cinco palavras, duas vírgulas e o ponto final: ?Garçons, queiram servir, muito obrigado?. Mas Adherbal Fortes não é pessoa que se possa resumir em cinco palavras.?

O discurso do jornalista e advogado Adherbal Fortes, por sua vez, também não pode ser resumido em cinco palavras. Num trecho, talvez.

?As duas carreiras são confluentes já que jornalistas e advogados têm um particular interesse em catástrofes, desvios de conduta e tragédias em geral.

Esse ensinamento estava fresco na minha cabeça quando a redação da Ultima Hora curitibana reinventou o personagem Zé do Burro do filme O pagador de promessas. O andarilho pediu ajuda para pagar sua promessa na catedral de Florianópolis. Alguém sugeriu que transferisse o pagamento para a Igreja do Rocio, em Paranaguá.

Nosso Zé do Burro tornou-se personagem de todos os jornais – porque um jornal imitava o outro e todos imitavam o Jornal do Brasil.

Chegou a Paranaguá com sua cruz para, como no filme, o confronto com a autoridade religiosa. Proibido de pagar a promessa, seu esforço ganharia a dimensão de martírio e talvez virasse notícia nacional, até internacional.

Ocorre que o bispo de Paranaguá era um sábio. Decidiu ignorar a chegada do peregrino. A escadaria ficou livre e as portas da igreja abertas.

A história teria acabado aí se o repórter que cobria o assunto não tivesse cometido um erro, pressionado pelo estreito deadline e pela própria ansiedade. Enviou uma reportagem de véspera, com relato do confronto que não houve, do sofrimento que não existiu.

Os jornalistas chamam a isso de barriga. No caso, uma abençoada barriga, fecho de ouro de uma seqüência de reportagens que retratavam a realidade social, o sincretismo religioso, a multiculturalidade, a humanidade do povo do litoral. O leitor gostou. Zé do Burro foi embora e as bancas continuaram pedindo mais jornais.

O editor paulista recompensou os responsáveis com um elogio e um ensinamento do velho William Randolph Hearst, o magnata da imprensa americana, que dizia aos seus editores: ?Não tenham medo de cometer erros. O leitor pode gostar deles?.

Talvez por isso o jornalismo foi definido como ?a literatura com pressa?. O erro de boa fé faz parte de nossa vida profissional. Grandes reportagens foram perdidas por excesso de apuração.

Não errar é desumano. É coisa de computadores. É privilégio de engenheiros calculistas, gente sem graça, nem imaginação.

Senhores. Precisamos ter a coragem de errar. Acima de tudo, precisamos ter coragem de ter coragem, principalmente num Brasil complicado como o nosso.?

De pelerine, o jornalista fechou a noite com poesia: ?É preciso crer na primavera que chegou com sua flor e sua plenitude – porque é o testemunho da vida que recomeça. É preciso – e aqui Adherbal citou Carlos Drummond de Andrade – preparar uma canção que faça acordar os homens e adormecer as crianças?.