A noite não tem memória

Foi num sábado de fevereiro. O bem-sucedido empresário resolveu surpreender a patroa e a convidou para uma feijoada na companhia de um casal amigo. Nos fim dos anos 1970, a melhor feijoada de sábado era no Restaurante do Guilhobel, lá no Alto da XV, onde o patriarca da família Camargo servia o seu cinematográfico “Feijão Trinity” para uma clientela exclusivíssima, a maioria desertores do Bar do Pasquale, no Passeio Público. Os íntimos não tinham hora para sair, terminavam as libações ajudando Guilhobel de Camargo a fechar o restaurante, já de noitinha. Em certos casos, Guilhobel simplesmente entregava a chave para o mais sóbrio (normalmente ao falecido deputado Norton Macedo) e voltava para os braços da dona Regina. A conta? Bem, a conta ficava por conta da subjetiva avaliação dos retardatários.

Naquele sábado, o empresário extrapolou: ainda em meio ao almoço, e embalado por tantas caipiras, anunciou a surpresa: “Que tal terminar o dia com a Banda de Ipanema, no Rio de Janeiro? Depois do desfile, jantar e hospedagem no Copacabana Palace, uma passada no Chico´s Bar, nascer do sol na Fiorentina e final da tarde no Arpoador? Já fiz as reservas e o piloto do jatinho está nos esperando no Bacacheri!”

Sem entrar em detalhes logísticos e para encurtar o programa, na manhã de domingo os dois casais retornaram ao Copacabana Palace, adernados num mar de álcool, depois de sassaricar pela Avenida Vieira Souto com a Banda de Ipanema e passar em revista a noite carioca.

No dia seguinte, o sol estava a pino quando o empresário de tradicional família curitibana acordou esfregando os olhos, procurando por algum objeto ou ambiente familiar. Em vão, tudo ali era desconhecido, exceto um sapato sobre a televisão e a trilha de roupas pelo chão. Com muito esforço levantou-se da cama, atabalhoadamente abriu as cortinas e vislumbrou uma nesga do mar: “Deus do céu, onde estou? Com quem estou?”.Olhou em volta e defrontou-se com uma silhueta feminina completamente coberta por um fino lençol: “Deus do céu, quem será essa pistoleira que arrastei pra cama?”.

O desmemoriado aproximou-se do misterioso corpo estendido, pegou numa ponta do lençol e, lentamente, começou a desvendar identidade, cores e formas. Dos pés aos ombros, nada era estranho. Quando descortinou o rosto, afastando do rosto íntimos cabelos eslavos, o contumaz sofredor de amnésia alcoólica não só desvendou o mistério, como também soltou um urro de felicidade: “É você, amor da minha vida, mãe dos meus filhos! É você, santinha! Como é bom te ver de novo, benzinho!”.

Aquele sábado na Banda de Ipanema é um retrato na parede e, ao que se sabe, eles continuam felizes para sempre.