À mesa, como convém

“A gula não é um vício secreto”, dizia o robusto cineasta Orson Welles, com um copo de champanhe numa mão e uma coxa de peru na outra. De fato. Nas festas de fim de ano consagradas à gula, nos tornamos exibicionistas da panturra, perambulando entre uma mesa e outra de seguidas confraternizações.

O historiador e antropólogo Luís da Câmara Cascudo não era nenhum especialista em etiquetas, mas nos deixou alguns bons conselhos de como o folclore brasileiro nos ensina a comer e beber. Um deles, talvez bem mais adequado para as ceias de réveillon à beira mar, previne para não ir à mesa pelado. É ofender o anjo da guarda. Assim como comer com o chapéu na cabeça é comer com o diabo.

Quando cai comida no chão, da boca ou do garfo, é sinal de “parente passando necessidade”. Não se levanta comida do solo porque é das almas. Vinho derramado é alegria. Sal derramado é agouro. Donzela não serve sal, não corta galinha nem passa palito. Recebe-se o prato com a mão direita e devolve-se com a esquerda. A direita é de bênção para o prato cheio. A esquerda é maldição para o prato vazio. Não se oferece o primeiro nem o último bocado. Terminando refeição amiga, deixa-se o guardanapo aberto para o convidado voltar. Deve deixar-se um pouquinho de comida no prato. É da cerimônia. Não se joga pão fora. É corpo de Deus. Antes de findar o repasto não se cruza o talher. Agouro. Farinha no chão é prenúncio de fartura. Engasgar-se com saliva é sinal de fome velha. Das aves o pedaço de honra é o uropígio (sambiquira), oferecido ao homenageado. Não se come carne verde (fresca) em casa de defunto recente. Enquanto se come evita-se dizer nome feio para não desrespeitar o anjo da guarda que assiste o comer dos cristãos. Mulher não deve beber vinho antes do que os homens. Mesmo que haja pessoa de respeito à mesa, o primeiro pedaço é dado ao dono da casa para não desejar a sua morte. Se ele recusar, o perigo passou. Donzela não devia ficar na cabeceira da mesa se não fica solteira.

Acabada a refeição, os convivas postos nas extremidades da mesa, levantando-se devem saudar-se para que um deles não morra antes de findar o ano. Dinheiro em mesa de comida provoca miséria. E, ao contrário do que se prega, quem senta na ponta da mesa não tem que pagar a conta de ninguém. É crendice de otário.