A guerra do cotidiano

“A guerra tornou-se um luxo hoje acessível apenas às nações pobres”, dizia a escritora Hanna Arendt. Ao que podemos acrescentar que hoje a guerra também é franqueada às grandes cidades de nações pobres. No Brasil, por exemplo, a guerra civil é um ensaio que lembra Madrid e Barcelona da guerra civil espanhola. E Curitiba não fica fora da comparação.

A escritora Martha Gellhorn (1908/1998) foi a maior correspondente de guerra do século XX e não foram poucas as guerras de onde enviou suas reportagens: começou em 1937, na Guerra Civil Espanhola, cobriu a Segunda Guerra Mundial e atravessou todas as seguintes, até entregar os pontos em 1992, com 84 anos, quando começou a Guerra da Bósnia.

Sem nunca deixar de escrever, aos 85 anos Martha Gellhorn fez uma de suas últimas viagens de trabalho ao Brasil: veio cobrir os massacres dos meninos de rua, de onde resultou o texto Os assassinatos no Brasil publicado na London Review of Books. Quando se preparava para esta viagem ao Rio de Janeiro, Martha disse que pesquisaria a guerra nossa de cada dia. A guerra do cotidiano, sua velha conhecida da guerra civil espanhola que está relatada no livro A Face da Guerra (Editora Objetiva, 415 páginas).

Nascida em St. Louis, Missouri, ao completar 21 anos Martha Gellhorn foi trabalhar na França, onde fez parte de um grupo de jovens pacifistas: “Tínhamos em comum a pobreza e nossa paixão”. Em 1934 conheceu os jovens nazistas de Berlim e, de tão enojada, em 1937 procurou as autoridades francesas para conseguir um visto para entrar na Espanha em guerra contra o fascismo.

Assim que entrou na Espanha sem visto (“O funcionário público francês é um boçal diplomado”), com um belo rosto, 50 dólares e muita coragem, grudou nos correspondentes de guerra. Circulou pelas frentes de batalha, aprendeu um pouco de espanhol, um pouco sobre a guerra, foi visitar os feridos e, como se fosse pouco, nada mais além disso: “Era um esforço insatisfatório e, um dia, semanas após a minha chegada a Madrid, um amigo jornalista comentou que eu deveria escrever. Afinal, eu não era uma escritora? Como é que eu poderia escrever sobre a guerra? O que é que eu sabia sobre o assunto e para quem eu iria escrever? Para começo de conversa, de que era feita uma reportagem? Não era preciso que algo gigantesco e definitivo acontecesse para se começar a escrever um artigo? Meu amigo jornalista sugeriu que eu escrevesse sobre Madrid. E que interesse teria isso para alguém? perguntei. Era apenas vida cotidiana. Ele ressaltou que não era a vida cotidiana de todo mundo”.

“A face da Guerra” (relatos de muitas guerras) que Martha viu no primeiro capítulo do livro foi o cotidiano de uma guerra urbana. Excetuando a força aérea de Hitler, as alarmes antiaéreos, os obuses, as explosões e as balas perdidas, o cotidiano de Madrid e Barcelona podia ser o cotidiano do Rio de Janeiro. Ou certos dias de Curitiba, por que não?

“Por toda a Madrid podiam-se ver as pessoas examinando os novos buracos deixados pelos obuses, num misto de curiosidade e assombro. Fora isso, cada um tocava sua vida como se a rotina tivesse sido interrompida por um temporal e nada mais. Num café que fora atingido de manhã e onde três homens haviam morrido, os fregueses já estavam de volta à tarde sentados numa mesa enquanto tomavam café e liam o jornal matutino. No fim do dia, caminhavam em direção ao bar Chicote’s, a rua parecia uma terra de ninguém. Mesmo quando o silêncio era total, ouviam-se os obuses apitando no ar. Ainda assim o bar estava lotado como sempre.”

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Dize-me com quem andas, que te direi quem és: Martha Gellhorn foi a terceira mulher de Ernest Hemingway. A pioneira correspondente de guerra pouco se referia ao escritor com quem viveu de 1940 até 1945. Ela jamais aceitou ser apenas “uma nota de rodapé na biografia de outra pessoa”, e por isso se recusava a falar de Hemingway.