A bula salvadora

Na terça-feira, amanheci com uma súbita gripe entranhada na pele, atravessada no nariz, vazada nos olhos e, na cabeça dolorida, o raciocínio se arrastava em câmera lenta. Quem está acamado sabe, para um leitor até bula de remédio é diversão. Depois de tantas sopas e bulas, fui ao computador por dever de ofício. Entre os e-mails, me deparei com a costumeira crônica que o escritor Deonísio da Silva costuma brindar aos amigos. Para minha grata surpresa, ele havia enviado um belo texto exatamente sobre bulas de remédio, aquelas malditas letrinhas que os olhos gripados não conseguem decifrar. Dizia Deonísio:

As bulas de remédios são inúteis para os consumidores. Além de trazerem informações desnecessárias e assustadoras, vêm carregadas de advertências confusas, que podem abalar a confiança que os clientes têm nos médicos. O objetivo é fornecer argumentos aos advogados dos laboratórios em eventuais ações judiciais. Os consumidores que se danem.

A bula deveria prestar informações indispensáveis aos consumidores. Mas não o faz com eficiência. A primeira dificuldade é o tamanho das letras. Antes de tomar o remédio – os redatores das bulas diriam ?ingerir o medicamento? – o cliente deve lembrar-se da relação de Jesus com as crianças e exclamar ?vinde a mim as pequeninas?.

Quem lê as bulas? Quase sempre as pessoas mais velhas. Ou porque vão tomar aqueles remédios ou porque vão administrá-los a quem, mesmo sabendo ler, não entenderia o que ali vai escrito. Os laboratórios não pensaram nisso ao escolher letras tão pequeninas. Ou pensaram e quiseram economizar papel. Seus consultores diriam ?otimizar recursos?.

O cliente toma óculos ou lupa e começa a difícil tarefa de ler a bula. Na compra do remédio – os marqueteiros dos laboratórios diriam ?produto? – houve dificuldade prévia. O balconista foi obrigado a decifrar os garranchos do médico. Como é que a sociedade brasileira tolera tamanha desconsideração e irracionalidade? A simples troca de letras pode transformar um remédio em veneno. E muitos médicos prescrevem suas receitas numa caligrafia incompreensível.

Cápsula, drágea, posologia, solução oral, ingestão concomitante etc., eis amostras de palavras e expressões muito freqüentes em bulas. Quem as entende? Na bula de uma pastilha, que sequer entrou numa escola de judô e por isso não tem faixa preta, lemos esta maravilha nas indicações: ?nas irritações e dores orofaríngeas oriundas de infecções ou processos cirúrgicos, como auxiliar no tratamento de angina de Vincent?. Modestos, os pesquisadores dão o próprio nome às doenças que identificaram. O médico francês Henri Vincent estudou a angina e morreu aos 88 anos. Terá chupado muito a tal pastilha? Com faixas vermelhas ou pretas, os remédios custam sempre uma nota preta.

A bula tem uma história curiosa. As primeiras bulas eram marcas feitas com anel para autenticar documentos oficiais e tinham a aparência de bolas ou bolhas, ambas com origem no latim bulla.

Foi o rei francês Luís II, o Gago, que entre 877 e 879 denominou bula o selo real. Afinal, semelhava uma esfera ou bola.

Antigamente a embalagem mais comum dos remédios era uma garrafinha. Pendurada num cordão vinha a bula, que tinha o fim de atestar que não era uma garrafada, era um remédio oficial. A garrafinha passou a ser denominada frasco. A substância, que era líquida, passou a ser oferecida em comprimidos.

A linguagem das bulas dos remédios deixou de defender os fracos e oprimidos. Hoje, só defende os frascos e comprimidos, como já ironizou antiga peça publicitária.

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Amigos é para essas coisas. Ao escritor Deonísio da Silva o meu muito – obrigado por essa providencial bula.