Entrevista exclusiva com o escritor Cezar Tridapalli

Em entrevista exclusiva, Cezar Tridapalli comenta sobre os planos literários para o futuro e fala sobre a repercussão de O Beijo de Schiller, considerado um dos melhores livros do ano.

Qual a principal diferença entre o autor de Pequena biografia de desejos e o de O Beijo de Schiller?

O Pequena biografia de desejos teve uma história de abandono, comecei-o e parei por três ou quatro anos. Depois, a retomada, o convívio com as incongruências causadas pelo distanciamento. E só mais para o final é que eu fui elaborar um mapa para eu me achar e não cometer nenhum deslize lógico, nenhuma derrapada na tal verossimilhança, além de tentar ter maior noção do todo. Não vejo isso como defeito, gostei do resultado e sei que há leitores que preferirão o primeiro romance ao segundo. Normal, e que bom. Para O Beijo de Schiller, eu construí o mapa antes do território narrativo propriamente dito. Eu já sabia de onde partiria e tinha muita noção para onde a coisa deveria ir, muito embora algumas soluções decisivas tenham surgido no meio do caminho, incluindo o título e as partes que o justificam. Mas o planejamento me deu tranquilidade. Mesmo nos dias em que nenhuma grande ideia aparecia, eu tinha o projeto que me mandava fazer a história andar. Depois de duas ou três frases escritas na tela, os dedos no teclado são as maiores fontes de inspiração que conheço. Para o mapa que eu elaborei é a mesma coisa, mas aí é a mão no lápis e uma grande cartolina branca na minha frente, com a qual me divirto escrevendo tudo em letras pequenas até ver o grande papel preenchido. De minha parte, acho que a grande mudança é esta, a do método de organizar a estrutura do romance. Não digo que um ou outro jeito melhora a qualidade do resultado. Melhora só o jeito de eu me localizar.

Para citar uma outra diferença, agora entre os livros, acredito que temos em Pequena biografia de desejos um personagem mais capaz de nos cativar e provocar empatia. Todos torcemos para o protagonista, o Desidério Santos dos Santos. Já em O Beijo de Schiller, podemos nos divertir com Emílio, mas podemos a um só tempo achá-lo um tremendo babaca. Aprendemos com ele, mas o xingamos também e há mais contrapontos vindos dos outros personagens. Creio que as coisas estejam mais difusas, as fronteiras mais borradas.

O Beijo de Schiller dialoga com autores importantes da literatura contemporânea – como Ian McEwan, Don DeLillo, Jonathan Franzen e Philip Roth –, combina um quê de mistério, filosofia e sociologia/antropologia. Como surgiu a ideia de escrever o livro?

Fico feliz por ser identificado com estes autores. O Franzen é o que menos conheço, nunca li sua ficção, apenas alguns tantos ensaios que, diga-se de passagem, achei muito bons. Eu, como já disse um pouco, me organizei mais para escrever o segundo livro, me cerquei de mais elementos, rascunhei tudo antes numa cartolina enorme e, com letra pequena e a lápis, escrevi toda a história do romance. Hoje adoro olhar para o grafismo daquela cartolina. Uma vez ouvi em Curitiba o escritor angolano José Eduardo Agualusa falar que só escrevia para poder saber o que iria acontecer no final. Achei ótimo, divertido e tudo, mas não consegui agir a,ssim no segundo livro. Quando não estou escrevendo, tenho meu bloco de notas sempre à mão, que é o meu telefone celular. Não fico obcecado em busca de elementos literários. Mas, aos poucos, eles vão surgindo, e eu os anoto sem nenhum método ou ordem, vou anotando aleatoriamente. O acúmulo dessas anotações esparsas vai criando um corpo, vão surgindo ligações entre elas, personagens, enredos. A partir daí, as anotações deixam de ser aleatórias e passam a ser mais focadas naquilo que entrevejo da história. O enredo de O beijo de Schiller teve um momento decisivo, quando a história começou a vir. Eu estava no Rio de Janeiro, acompanhando meu pai, que tiraria o visto para os EUA. Como não pude entrar na embaixada, fiquei do lado de fora, lendo uma revista que trazia um ensaio do escritor turco Orhan Pamuk, que por sua vez falava da obra Poesia ingênua e sentimental, de Friedrich Schiller (1759-1805). Em Curitiba, moro muito perto da Rua Schiller, que é uma rua muito bonita e diferente, muito arborizada, um verdadeiro parque linear, com cancha de bocha, pista de skate, academia ao ar livre, quadras esportivas, playground etc. E o Schiller, o alemão, falava sobre como podemos dividir as pessoas entre aquelas que têm uma postura mais ingênua e inocente diante da vida e aquelas mais maliciosas, que percebem a vida de um jeito mais artificioso, como se jogassem. Aí criei um protagonista que mora na Rua Schiller e vive seus dilemas na hora de tentar decifrar a si mesmo e a outros personagens, sobretudo o menino, que, sabemos desde a primeira página, é seu sequestrador. Eu também gosto muito do humor deste livro, embora nem de longe possamos considerá-lo uma comédia. Espero que ele provoque um riso sentido, que, no fundo, ri da tragédia dessa tal de condição humana, tão falada e tão pouco compreendida. Não tento compreendê-la, mas cutucar alguns de seus enigmas.

Como foi a experiência da repercussão de O Beijo de Schiller?

Eu espero sinceramente que a repercussão esteja apenas começando. Em Curitiba, a tão famigerada autofagia não deu as caras, pois é onde o livro melhor circula, com matérias nos principais jornais do estado, esta entrevista, participação no Litercultura, gravação de entrevista para TV, entrevista ao vivo em rádio etc. Mas eu ainda espero ser lido por outros centros. Não se trata de pedir a bênção dos eixos maiores e mais representativos, mas justamente de colocar a obra à prova de outros contextos e leitores. Quero saber se o romance tem algo a dizer fora do cenário curitibano. Vencer o Prêmio Minas Gerais de Literatura deu uma medida dessa possibilidade, vamos ver se O beijo se espalha e tem condições de ser distribuído, lido e reverberar em outras plagas. Outro ponto muito relevante – mais que qualquer outro – tem sido a receptividade dos leitores, que está sendo muito positiva. Lá no site (www.cezartridapalli.com.br) tenho colocado as impressões de todos os que me escrevem, que tiram um pouco do seu tempo para trocar impressões e análises. É isso que eu gostaria de ver amplificado. Se escrevemos é porque achamos que temos algo a dizer e compartilhamos com o leitor algumas inquietações comuns, capazes de tocar em pontos também sensíveis a ele. Então é claro que queremos ser lidos, migrar para dentro da cabeça das pessoas ou, melhor, alugar por um tempo a cabeça das pessoas.

Recentemente você foi à Holanda em busca de ideias para seu novo romance. Por que a escolha de uma cenário estrangeiro?

As ideias eu já tinha e a Holanda, por causa de uma série de fatores, estava nelas. Fui para a Holanda porque o romance deve falar do ser estrangeiro, o olhar de um brasileiro fora do país e vice-versa. Vou investigar os tipos de imigração de que os personagens podem lançar mão para ver se conseguem fugir de si mesmos, ou ao menos da versão que construíram de si mesmos. É a tentativa de migrar para outro eu. Terras estrangeiras aparecem de leve nos meus dois primeiros romances (Roma, em Pequena biografia de desejos, Berlim e Orl&ea,cute;ans, na França, em O beijo de Schiller). No próximo, Curitiba continuará a ser importante, dessa vez olhada ainda mais em perspectiva, em contraponto com uma cidade europeia, que é Utrecht, na Holanda.

Ainda nesse assunto, você acredita que o “escritor curitibano”, um ser tratado como uma espécie local, precisa necessariamente buscar suas referências somente no ambiente comum e autorreferente da cidade?

Mesmo que às vezes eu escreva cenas que beiram o absurdo, todo o absurdo cabe na realidade, não se trata de literatura fantástica, embora eu goste de lê-la em certos momentos. Meus dois romances têm um registro realista. Eu invento histórias, cenas, situações, mas não o cenário. Tudo se passa em cenários reais, ruas reais, paisagens. E, mesmo já tendo viajado muito, nasci, cresci e vivi desde sempre em Curitiba, que é minha âncora. Ela me dá lastro e me afunda. É o espaço do planeta que eu mais conheço, e é inescapável falar disso. Quando comecei a entender melhor os movimentos literários e artísticos, e junto estavam as aulas de Literatura Brasileira que eu dava, percebia que Curitiba não aparecia no mapa literário do país. Comecei também a entrar em contato com o discurso da autofagia curitibana. Fiquei cabreiro. Afinal, por que nossa música não toca nas rádios, nossos escritores, com honrosas exceções, não fazem parte do cânone? Nosso cinema, nossa dança etc. Mas essa impressão ruim foi diminuindo. Quando eu lancei o primeiro livro, eu era um completo desconhecido, sem ligação com a academia nem com o meio jornalístico. Logo em seguida, vi o romance transitar bem pela cidade, conheci outros escritores e vi que o movimento era muito bom, diverso, que mostrava a cara em várias frentes. Nasci em um bairro um pouco mais afastado, hoje moro perto do Centro, ou seja, tenho uma formação inicial ligada ao futebol de rua, à escola pública, a subir em árvores e viver de joelhos ralados. Depois, com a mudança, o asfalto por todos os lados, sair de casa sempre calçado, com uma roupa mais ou menos, todos esses contrastes ajudam a formar um jeito de conhecer a cidade. Esse pêndulo entre o centro e o bairro afastado aparece de forma muito evidente em Pequena biografia de desejos. Curitiba está grudada na minha pele. Mesmo se um dia eu não usá-la como cenário, ela vai fazer parte de uma maneira de enxergar as coisas. Alguns dizem que isso é provincianismo, eu não acho. Ou então tudo é.

Divulgação/Paulo Henrique Camargo
Para Tridapalli, a função do escritor é muito mais
que “somente” escrever.

E por falar em “cenário local”, como você vê a cena literária atual? As livrarias apoiam o autor local?

Há muitas cenas. Ou uma cena com muitas frentes. Publicações literárias são uma tradição antiga na cidade. Todos os requisitos para a criação de um sistema literário propriamente dito existem em Curitiba: temos revistas e jornais de literatura entre os mais importantes do país, temos editoras, temos escritores, temos livrarias. Por mais incrível e contraditório que pareça, acho que não temos leitores. Não defendo o bairrismo, achando que curitibanos precisam ler curitibanos, mas acho que poderiam ao menos conhecê-los. Os próprios materiais didáticos reforçam a tese de que só existe literatura antiga e feita em outros lugares. A lista de livros dos muitos vestibulares também endossa essa sensação. Se a literatura contemporânea é uma forma de dialogar com a tradição e pensar o tempo em que ela foi escrita, de jogar algumas luzes sobre o seu presente, ela merecia ganhar um pouco mais desses espaços institucionalizados. E ainda existe a lenda (ou o fato?) de que, para ser reconhecido em Curitiba, você precisa antes passar pelo crivo do Rio e de São Paulo. Temos romancistas, poetas, contistas e cronist,as de uma qualidade grandiosa. Não à toa, estão indicados para os principais prêmios literários do país. E, como disse, é uma cena com muitas frentes, pois a indicação para prêmios passa longe de muitos autores curitibanos, não por falta de qualidade, mas porque procuram se infiltrar em outras searas, fazendo edições artesanais, autopublicações, trabalhando nas escolas, publicando pelos blogs e redes sociais. Gente boa mesmo, não estou fazendo média. E temos, por fim, os nossos cânones, que pularam os muros da cidade e estão no Brasil todo e em muitas partes do mundo. Quanto às livrarias, eu acho isso um problema mesmo, embora seja ruim falar sem conhecer melhor. Mas, só para ter uma ideia, O beijo de Schiller, um romance premiado, que saiu com matéria nos principais veículos de comunicação de Curitiba, não está sendo vendido na maior rede de livrarias da cidade. Tentei contato pessoal duas vezes, mas não consegui até agora entender por que o livro não é vendido lá. Meu editor também diz que não entende.

Qual o papel do escritor na construção dessa cena local?

Mais do que fazer um favor para a cidade, de início a cidade é que dá material para o autor escrever. No longo prazo talvez a coisa se inverta, ou ao menos se equilibre, caso a obra não morra, não seja esquecida. No dia a dia, estamos fazendo a cidade discutindo seu planejamento urbano, sua mobilidade, saúde, educação e segurança, leis de incentivo etc, mas existe uma discussão da cidade que é de outra ordem, ou de outro caos. Tem uma frase ótima no início de As cidades invisíveis, do Italo Calvino, que diz o seguinte: “A cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das recordações e se dilata”. Essa onda que reflui, reflui das recordações e da linguagem/discurso que se construiu a partir da cidade e, numa retroalimentação, constrói a própria cidade. A literatura pode impedir que a língua vire “apenas” (vamos salientar as aspas desse “apenas”) documento histórico ou jornal para embrulhar o peixe na feira. As recordações nunca são a reconstrução fiel do passado, elas aparecem reelaboradas no diálogo com as lentes de leitura do presente. Se um livro for realmente bom, ele será significativo no seu tempo e continuará a sê-lo no futuro, pois é capaz de resgatar a história e de re-presentá-la, ou seja, torná-la presente de novo. Então uma obra ser capaz de, a cada leitura, atualizar a cidade. Mesmo que  a cidade seja apenas cenário (é o meu caso), ela nunca será um cenário “pano de fundo”, sem interação com as coisas que acontecem.

Mais um detalhe: o escritor precisa ir além de escrever a obra e isso é por vezes desanimador, até constrangedor, porque a gente precisa se expor bastante. Para personalidades tímidas e inseguras – estou falando por mim – é um esforço grande ficar se autopromovendo. Ter um papel político, ok, mas ter que ficar promovendo seu próprio livro, ficar falando bem dele e tal, isso é realmente constrangedor.

Clarice Lispector dizia que escrevia com a mesma necessidade de quem se alimenta. Por que você escreve?

Muito é por diversão intelectual, diria ser esse o principal motivo. É sofrido antes, é sofrido durante, mas o final de um dia de trabalho que rendeu dá a energia suficiente para prosseguir. E quando o trabalho não rendeu, é preciso escrever sem energia mesmo. Ir para o computador sem pensar muito, como se não houvesse mesmo alternativa. Uma frase bem ajeitada, uma sacada para o enredo, uma peripécia bem encaixada, uma reflexão não forçada, tudo isso é o que eu chamo de diversão intelectual. Além disso, sou um sujeito indeciso e, a cada opinião que tenho, trago sempre um amigo imaginário a me apresentar um contra-argumento que me impede de ter convicções muito sólidas. Então a literatura, polifônica por sua ,natureza, acaba sendo uma arena boa para colocar os conflitos em vez de resolvê-los. Resolver, se for o caso, vai ser tarefa do leitor.

As redes de livrarias crescem mais e mais. As listas dos mais vendidos estão com números mais estonteantes. Você, como professor e escritor, acha que os jovens estão lendo mais e melhor?

Concordo com o crescimento do mercado editorial e os números mostram isso. Mas curiosamente o número de leitores de livros não cresce. Até retrocede, se pegarmos as duas versões anteriores do documento Retratos da Leitura no Brasil (2007 e 2011, se não me engano). Há mais leitores de tela, isso é certo, que são aqueles leitores de textos mais curtos, informativos etc. Isso é bom, mas os livros mesmo não estão indo parar nas mãos dos leitores. Minha esperança é no longo prazo, e creio haver motivo: nossa defasagem de bibliotecas é muito grande, boa parte das escolas não têm bibliotecas e, se têm, são geridas por profissionais não-leitores, entre outros problemas. Aí, a questão: como o mercado editorial cresce e o número de leitores não? É que o maior comprador de livros do mundo é o governo brasileiro, que busca equipar as escolas com bibliotecas. Talvez, no longo prazo, a escola consiga formar leitores (e eu já afirmo isso louco para contra-argumentar, tal é a dificuldade que a escola tem de aproximar os alunos dos livros). Temos que ter um professor leitor, premissa básica. Temos que dar acesso aos livros. Temos que mostrar que a literatura não é coisa do passado e que ela se faz aqui e agora. Falando assim, parece fácil. A gente tem a ideia de um bolo perfeito na cabeça, mas não tem muita ideia de como fazê-lo. No geral, não sou otimista. Nunca fomos leitores de livros e não vejo isso no horizonte próximo. E sei que estou me contradizendo, mas essa contradição é coerente com a minha personalidade claudicante (risos).

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