A literatura – talvez – seja a única arte incapaz de manter obra/criatura e criador/autor fora do isolamento. Pode-se escrever na penumbra de um quarto nos recônditos do país: ainda assim o escritor tem naquelas páginas a sua companhia. O personagem pode ser só; pode estar no leito de morte, mas, de alguma forma, existe – ou existiu – o contato humano ou imaginário.

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Os Piores dias da minha vida foram todos, de Evandro Affonso Ferreira, laçando há pouco pela Record, é a prova disso. A personagem do livro é uma moribunda que repassa a sua vida a Antígona – aquela, a filha de Édipo e Jocasta – em um fluxo de conciência digno de James Joyce. A mulher sabe que vai morrer e tem naquela criatura mitológica/imaginária a única fonte de consolo capaz de aparar as arestas do seu desespero.

Evandro é ousado ao criar uma linguagem muito próxima ao pensamento, evocando não apenas sinais da oralidade, mas colocando às vistas do leitor um impressionante jogo narrativo; estabelecendo ritmo caótico, próprio da velocidade do raciocínio atormentado de alguém que viveu amargamente os seus dias. E, por isso, foram os piores.

Resposta

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Morrer, aos olhos da protagonista, não é o fim, mas o recomeço. É a única forma que ela encontrou para se livrar do tédio que é estar entre homens e mulheres, seres incapazes de transformar o cotodiano madorrento em algo que valha a pena. A vida é, como ela mesma diz, um amontoado de fezes.

Divulgação
Capa é do curitibano Frede Tizzot, um
dos criadores da Arte e Letra.

Pouco a pouco, ponto a ponto, quanto mais próxima da morte, mais a personagem percebe que a felicidade é uma utopia, uma espécie de meio sem fim. É a mesma conclusão de Vinícius de Moraes em “A Vida tem sempre razão”: a gente mal nasce e começa a morrer. Porém, ela não viveu. Sua passagem por aqui foi, como dizia Wilde, apenas uma existência.

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No final das contas, só nos resta a incerteza e a frivolidade da hipocrisia que permeia o contato – e o contrato – social. Os julgamentos superficiais e as investidas irônicas daquela mulher à beira da morte, que tem em Antígona sua única confidente, são o retrato da sociedade contemporânea, pautada no ter e tão ausente do ser.

No livro de Evandro Affonso Ferreira ninguém é. Todos os personagens simplesmente estão. Estão catatônicos por uma solução de um problema fundamental: a vida. É como se a cada linha fosse jogado na cara do leitor: qual a sua função no mundo? E, claro, ninguém tem resposta.

Erudição

Evandro é um erudito, como poucos. Mas essa erudição não tira de Os Piores dias da minha vida foram todos a identificação do mais reles ser humano com os dilemas da personagem do livro. A simplicidade das situações – sempre recheadas pela complexidade moral – é o que permite que, mesmo estando todos à beira do abismo, alguns não irem para baixo.