Crítica: “Middlesex”, de Jeffrey Eugenides

Uma vez perguntaram a Patti Smith, muito antes do Horses, se ela era menino ou menina. Anos mais tarde, o visual andrógeno – ‘meio Xororó, meio alienígena’ – de David Bowie na época do icônico The Rise and fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, de 1972, causou furor ao colocar em dúvida o gênero sexual do cantor. As duas situações fazem parte da concretização da consciência coletiva de que havia algo além do masculino e feminino.

E foi essa premissa – ou seria possibilidade? – que serviu de base para Middlesex, de Jeffrey Eugenides (Companhia das Letras, 576 págs., R$ 59,90), que acaba de ser relançado no Brasil. Em meio à revolução sexual, o uso das drogas e a sua própria puberdade, Calíope Stephanides, neta de imigrantes gregos, descobre que, apesar de ter vivido 14 anos de sua vida como menina, as entranhas do seu corpo escondiam as engrenagens de um homem.

“Nasci duas vezes”, diz Callie, “primeiro como uma bebezinha e de novo como um menino”. A primeira frase do livro é a amostra da perspicácia de Eugenides que desenvolveu a ideia de Middlesex depois de ler as memórias de Herculine Barbin (1838 – 1868) e se sentir insatisfeito com os relatos.

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Setor histórico

Após o sucesso de As Virgens suicidas – também relançado pela Companhia das Letras -, Eugenides levou 9 anos para criar Middlesex, alimentando seus leitores com esporádicos contos publicados em revistas norte-americanas. Parte desse hiato se deveu ao tempo que o escritor pesquisou sobre os conflitos na Grécia que levaram à emigração para os Estados Unidos – usando parte da biografia de sua própria família para encorpar o texto -, pingando lembranças sobre os tempos da Grande Depressão, o sonho americano e desembocando nos conceitos de inato e adquirido.

Os cuidados paralelepípedos narrativos de Eugenides foram assentados com cuidado – para não se transformarem em meras pedras nas mãos de leitores. Aí, entra toda a leitura de artigos científicos sobre a vida de hermafroditas na América, chegando à descrição anatômica dos órgãos genitais. Pode parecer preciosismo, mas é o mock-up bem feito de uma autobiografia – já que é Callie, que depois será apenas Cal, quem conta a história.

Ex ovo omnia

Tudo vem do ovo. A explicação para a intersexualidade de Calíope, que na mitologia grega é a deus da poesia, está no casamento de seus avós, Desdêmona e Esquerdinha, que são um misto de primos e irmãos. A carga recessiva de seus cromossomos não recai sobre os filhos, mas sim sobre a neta. E lá está ela: uma fugitiva de sua própria natureza que, em alguma curva, se desgovernou.

Middlesex é mais que a memória de Calíope, mas a busca por uma identidade que só pode ser encontrada depois que se entende como tudo aconteceu.