Crítica: “Graça infinita”, de David Foster Wallace

A primeira vez em que David Foster Wallace (1962 – 2008) colocou os pés na Universidade de Pomona, na Califórnia, muitos dos seus alunos devem ter achado estranha aquela figura: bermuda, camiseta de futebol americano, bandana e as meias até os joelhos. A sala de aula era um ambiente de transformação, como se o homem angustiado e o escritor perfeccionista se fundissem em algo maior. A explicação prática dessa metamorfose está em uma das recentes declarações do cineasta Paul Thomas Anderson, que foi aluno de Wallace, e afirmou ter se apaixonado pelo escritor. A declaração pode ter sido metafórica, mas o sentimento era real.

Essa espécie de devoção de Wallace era como uma catarse quando ele se propunha a escrever. O resultado mais famoso desse processo é a sua obra-prima, Graça infinita (Companhia das Letras, 1.114 págs., R$ 111,90), que ganhou sua primeira – e até agora única – edição para o português brasileiro no final do ano passado, sob a batuta tradutória do curitibano Caetano Galindo.

O livro, lançado originalmente nos Estados Unidos em 1996, é a história da família Incandenza, que precisa se recuperar da morte do patriarca James Orin Incandenza Jr, um ex-cientista que acaba ocupando seus dias como cineasta e cria o filme “Graça infinita”, capaz de entreter seus expectadores de tal forma que os leva à morte. Atormentado por sua própria obra, James se suicida e a família precisa continuar seu caminho sem ele.

Os filhos – Orin, Mario e Hal – e a esposa – Avril – precisam administrar, além do espólio intelectual do falecido, a Academia de Tênis Enfield, um dos pontos?locais centrais do romance. Como toda ficção distópica, Graça infinita se passa em algo que pode ser chamado de “futuro”. Ao contrário do que se espera, os anos não são especificamente comuns, eles foram vendidos às grandes corporações e passaram a se chamar, por exemplo, Ano da Frauda Geriátrica Depend, Ano do Emplastro Medicinal Tucks ou Ano do Chocolate Dove Tamanho-Boquinha. Nessa época, os Estados Unidos e o Canadá são um só: a Organização das Nações da América do Norte (Onan), talvez uma referência às junções continentais de 1984, George Orwell.

Esse é apenas o núcleo da narrativa que, pouco a pouco, se desdobra em situações paralelas, como um grupo de revolucionários cadeirantes de Quebec, ou Don Gately, um criminoso viciado em demerol que tenta se libertar do passado resistindo às tentações que o destino prepara.

Humor hiperbólico

Os dez anos que Wallace precisou para escrever o livro não foram em vão. Graça infinita é considerado um Ulysses moderno. Mas as comparações com a obra de James Joyce são mínimas. O discurso do norte-americano é uma mistura do popular, que não vira as costas para palavrões e expressões pouco lisonjeiras, com o erudito, principalmente nos conceitos morais e sociais que aborda.

Nesse sentido, o autor é radical: abreviações, gírias, expressões caudalosas. Nada é desperdiçado. David Foster aproveita cada quinhão da sociedade americana para criar um simulacro, certamente, muito mais exagerado que o original,. E esse é o humor característico do texto: a hipérbole – como se as feridas microscópicas fossem ampliadas em uma tela de cinema. (Aí, a necessidade do suicídio dos personagens e do próprio autor.)

Hipertexto

Muito antes de se pensar em ler livros em tablets, celulares ou computadores, David Foster Wallace já havia encontrado uma maneira de criar inúmeras narrativas paralelas e hipertextuais: as notas de rodapé. Por isso, as 133 páginas finais do livro são dedicas às extensões criadas pelo autor. Algumas notas, como a 24 e a 324, possuem mais de dez páginas cada uma. A estratégia teria proporções similares no conto “A Pessoa deprimida”, do livro Breves entrevistas com homens hediondos.

É impressionante pensar que, como contou Michael Pietsch, editor de Wallace, muitas partes daquilo que pode ser chamado de “raciocínio inicial” foram cortadas e alguns personagens desapareceram na versão final do livro. Nesse sentido, o caos é organizado, não existe anarquia e, após algumas semanas de leitura dedicada, o universo da família Incandenza – e do próprio David Foster Wallace – ganha uma magnetismo incomum.