Crítica: “A Camisa do marido”, de Nélida Piñon

Existe uma tradição secreta brasileira – que talvez tenha começado com Clarice Lispector –na literatura sobre a visão feminina das relações humanas. Digo isso sem nenhum pingo de misoginia. Ao contrário dos homens que parecem enxergar o macro, as mulheres se desenleiam nos aspectos subjetivos da família e da sociedade. A escritora Nélida Piñon em seu novo livro, A Camisa do marido (Record, 160 págs., R$ 32), dá continuidade a essa teoria.

Os nove contos que compõem o livro são o retrato fiel dos arranjos familiares e sociais de uma era, sem que o olhar experiente fique no escanteio. A matéria-prima de todos os textos é a mais simples: o dia a dia urbano. A ligação entre pais e filhos é mais natural, repleta de amor e compreensão ou a mais macabra e brutal, em que o pai precisa proteger sua esposa dos olhares insidiosos de seu próprio filho.

A família, afirma Nélida, é, ao mesmo tempo, maravilhosa e sombria. Esse yin-yang social já está representado, por exemplo, nas narrativas bíblicas: um irmão que mata o outro por vaidade; um pai que decide sacrificar um filho em nome de uma crença; uma mulher que decide engravidar já muito velha. Então, o que mudou? Segundo os texto de A Camisa do marido, absolutamente nada.

Glória

Nélida não é nenhuma novata. Aos 77 anos, a Imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL), filha de imigrantes espanhóis da região da Galícia, nunca escondeu sua preferência pelos temas que muitos escritores tinham como menores. Seu primeiro livro, Guia mapa de São Miguel Arcanjo (1961) era o início de um diálogo entre os lações de família e a quebra das convenções.

Desde o começo de sua carreira literária, Nélida foi universal: falava ao mundo. Tanto que, em 2005, recebeu um dos maiores prêmios da literatura, o Príncipe das Astúrias – que tem entre os laureados Paul Auster, Philip Roth e John Banville. E A Camisa do marido é tão atual e universal que em nada deixa a desejar aos seus colegas de láureos.