Uma pergunta que define a forma de um tipo de brasileiro se relacionar com o outro no dia-a-dia ou nas ruas é a famosa “Você sabe com quem está falando?”. Ela denota hierarquia na sociedade, a da autoridade superior ao resto. O diacho é que todo mundo ao redor da “autoridade” recorre a esta expresão abusiva. O filho que se julga herdeiro da autoridade do pai, a mulher que se julga parceira do poder do marido, a amante que se julga com direito a privilégios, pois contribui com o corpo para o bem estar emocional do sujeito e assim cria-se uma rede de pessoas prepotentes e abusadas.

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E, na realidade, esta gente não é nada além de filho, mãe, pai, mulher, noiva ou amante de um delegado, deputado, prefeito, magistrado, quando não, um reles vereador, que no Brasil é autoridade. No convívio social, a relação íntima ou familiar com capacho de um sátrapa vira trunfo para sobrepujar o outro. A expressão é um resíduo de sociedade mal formada, que sente dificuldade em praticar no dia-a-dia os conceitos da democracia porque, a bem da verdade, a democracia não nasceu de forma espontânea no território brasileiro, como anseio ou cultura popular. Esta foi terra da escravidão e do império com seus barões de louça – quebravam fácil e não tinham honras.

A democracia apareceu aqui por imposição da evolução social internacional que não admitia, nas bandas do ocidente, uma sociedade escravocrata ou que tivesse – muitas vezes ainda tem – práticas análogas. O capitalismo precisa de consumidores e não de escravos que não consomem. No entanto, ainda hoje, quando um pobre cidadão ouve a expressão no trânsito, numa fila ou mesmo na feira, ele treme: medo de ir para a cadeia por mixaria, porque, sem querer e sem saber, falou de forma igualitária e não subordinada, com alguém com poderes para prejudicá-lo. Alguém que, curiosamente, em muitos casos, usou regras democráticas, como eleição, para estar onde está por tempo determinado, mas que, naturalmente, anseia ficar para sempre – de preferência que tais poderes sejam transferidos a seus rebentos. Estes regurgitam a velha canção de Belchior: “Ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais”.

Existem casos nas sociedades brasileira e paranaense. Não é preciso ser esperto para encontrá-los por aí. Quando ouço a expressão acima eu me lembro de um episódio curioso ocorrido num jornal em que trabalhei. Tarde da noite na redação, horário de fechamento, redação nervosa, ponteiros do relógio correndo, prazos se esgotando, páginas fechadas, todos num alvoroço, quando o telefone toca. O furibundo Tião Goiaba atende e no outro lado uma voz educada pede para ele conferir se uma matéria estava saindo na pagina três. Nervoso, com um monte de tarefas a cumprir, Tião Goiaba retrucou: “Eu não vou ver nada, porque tenho muita coisa para fazer”. A voz insistiu: “Eu quero que você veja isso. E agora”. Tião Goiaba ficou firme: “Eu não vou ver coisa nenhuma e não me torre a paciência”. A voz do outro lado indagou: “Você sabe com quem está falando?”. Tião Goiaba respondeu: “Não tenho a menor ideia e não me interessa”. A voz se identificou: “Aqui é fulano, dono do jornal”.

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Tião Goiaba esfriou mais que defunto em geladeira de necrotério. Afinal, era o dono do jornal e patrão de Tião Goiaba – não era uma simples autoridade. Então, ele perguntou educado: “E o Sr. sabe com quem o senhor está falando?”. O outro respondeu: “Não tenho a menor ideia.”. Tião Goiaba respirou aliviado e respondeu: “Ainda bem!”. E desligou o telefone. No folclore ou na realidade do dia-a-dia, não interessa tanto com quem você fala, se você faz a coisa certa – e se você não faz a coisa certa não adianta se esconder sob as asas de um poderoso temporário, porque o erro continua repugnante e não será esquecido. Para a sociedade evoluir é necessário que as pessoas que usam de forma indevida a expressão “você sabe com quem está falando?” sejam colocadas em seus devidos lugares. De cidadãos, com direitos e deveres como todos os outros – e não alguém acima na escala social por ser parente ou agregado emocionalmente de alguém encastelado no poder. Principalmente no poder público, que sobe à cabeça como a mais letal das drogas – a droga que transforma verme em monstro.