Uma cena que faz parte da rotina da Rua XV nos dias de chuva, principalmente as chuvas inesperadas, é a aparição repentina dos vendedores de guarda-chuva. Todo mundo é surpreendido pela precipitação, corre de um lado para o outro, mas eles aparecem para salvar os incautos cidadãos. Empunhando um guarda-chuva com o qual se protegem do temporal e com mais dez embaixo do braço, eles têm a solução imediata, geralmente a preços módicos. São vários, principalmente ao longo da mais famosa rua da cidade. As pessoas de fora ficam surpresas – e muitas que moram na capital também.

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A pergunta mais frequente é: “De onde eles saíram?”. Ou: “Onde pegaram estes guarda-chuvas?”. Como tudo é rápido, o mistério perdura. No entanto, o meu amigo Adriano flagrou a repentina transformação de um pipoqueiro em vendedor de guarda-chuva – algo raro de ver, assim como é raro presenciar a transformação de Bruce Wayne em Batman ou a do repórter Clark Joseph Kent, do Planeta Diário, em Superman. Nos três casos a identidade secreta faz parte do sucesso. A surpresa é componente da estratégia. E a astúcia é a alma do negócio. Podemos até exagerar um pouco e dizer que os vendedores de guarda-chuvas da Rua XV são uma espécie de super-heróis que aparecem repentinamente quando a população precisa deles.

Na condição de detentor deste segredo, Adriano me deixou este depoimento: “Foi muito rápido. Por pouco eu não o surpreendo em sua metamorfose ambulante”. Assim que caíram os primeiros pingos, o insuspeito e inofensivo vendedor de pipocas se transformou num membro da Liga dos Vendedores de Guarda-chuvas da Rua XV. “Ele baixou rapidamente o vidro do carrinho de pipocas para proteger o produto e cobriu o carrinho com um plástico, para protegê-lo da chuva”, disse Adriano. No entanto, antes de puxar o plástico, num átimo, num segundo, ele ergueu um compartimento, o mesmo em que fica o pequeno botijão de gás e retirou vários guarda-chuvas. Abriu um, colocou uns dez embaixo do braço e saiu vendendo.

“Os demais, quase todos, são vendedores ambulantes que atuam no centro da cidade e estão sempre prontos para entrar em ação como vendedores de guarda-chuvas”, contou Adriano. Depois do primeiro flagrante, ele passou a observar o comportamento dos demais e se tornou especialista neste tipo de personagem urbano. Claro, como ocorre com todos os super-heróis, estes também não gozam de unanimidade. Há os que reclamam da qualidade dos guarda-chuvas que seriam feitos para suportar apenas uma chuva – para ser usado apenas uma vez. “Maledicência”, diz Adriano. “Em muitos casos, estes guarda-chuvas suportam até três precipitações pluviométricas, desde que não sejam tempestades”, disse ele.

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Depois de passada a surpresa com a revelação, eu fiquei impressionado com um detalhe que, em minha opinião, é o mais importante em tudo isto. A capacidade empreendedora do povo brasileiro. Existem pessoas, principalmente aquelas que são ricas e não trabalham, vivem de alguma sinecura, que gostam de dizer que o povo brasileiro não gosta de trabalho. Infâmia. Ele gosta de trabalhar e é trabalhador. Não apenas: é também empreendedor. O vendedor de pipocas, o sujeito da banca de jornais, o chaveiro, todos eles que mantém um estoque de guarda-chuvas estrategicamente escondido, porque sabem que mais cedo ou mais tarde vai chover e as pessoas vão ser surpreendidas e vão precisar de proteção, demonstram um senso de oportunidade sem o qual nenhuma atividade econômica será bem sucedida. Isto é um case.

E não são apenas os vendedores de guarda-chuvas, há os carrinheiros, os vendedores de redes e de rendas do Nordeste, os vendedores de queijos e salames de Minas nas empresas, enfim, uma série de atividades informais exercidas com o objetivo de ter um rendimento honesto. Há uma infinidade de brasileiros que honram o verso do Hino Nacional: “Verás que um filho teu não foge à luta”. Estão nas ruas. Em dias de sol. Ou em dias de chuva. Podem não ser super-heróis. Mas são heróis.

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