Um homem sem CPF não é ninguém

Uma devastação silenciosa afeta um tipo de árvore que não desperta o menor interesse dos ecologistas: as árvores genealógicas. Elas também somem da face do planeta. E não me refiro a estas árvores dos capitães hereditários do Paraná, mas aos autênticos, que vieram de Portugal, Espanha e França para construir de forma estapafúrdia este país chamado Brasil. Há uma revolução demográfica anarquista em curso que atropela os elementares conceitos genealógicos e heráldicos. E para quem gosta de tradição, família e propriedade, é o fim da picada.

Hoje em dia não tem importância descender de Pellicer de Ossao y Tovar ou de Pedro Montemayor del Marmol. Tampouco se o antepassado foi citado no livro de José Freire Montarroyo Mascarenhas. Há coisa de 60 anos os estudos genealógicos gozavam de amplo prestígio, havia sociedades que se dedicavam à heráldica em vários estados e em quase todos os países do ocidente – elas eram atuantes. Eram publicados periodicamente livros sobre ramos familiares e também sobre descobertas de que um ramo cujo nome embora grafado de forma diferente, na realidade era da mesma linhagem de uma família importante de Portugal ou Espanha.

Havia uma enorme bibliografia sobre o assunto. Antonio de Betencourt Perestrelo de Noronha inseriu a sua Genealogia das Famílias da Ilha da Madeira na Coleção Pombalina da Biblioteca Nacional de Lisboa. Quem não estava num livro deste, não era ninguém. Algumas obras continham vários autores como Da Sucessão Genealógica e Ascendência de Algumas Famílias Ilustres deste Reino de Portugal, acrescido de Armaria ou Brasões da Nobreza de Portugal, composto por Diogo Fernandes de Mendonça, consertados, apresentados e iluminados por Joaquim José de Saldanha e Albuquerque e Noronha.

Os cultores das árvores genealógicas aparentemente estão hoje em pequeno número e um tanto alvoroçados com o desinteresse das novas gerações por tais requintes. Os grandes nomes e os grandes ramos familiares se afogam na crescente multidão e agem como pessoas de nomes cuja origem e ramos familiares desconhecem. Aliás, muitas pessoas hoje em dia desconhecem até quem foram os seus pais – alguns consideram grande luxo conhecer os avôs. Eu tive um amigo que escreveu para uma instituição de Portugal querendo saber se o seu nome se relacionava aos Benevides da Ilha de São Miguel. Não sei como o caso foi parar na internet, esta bisbilhoteira contemporânea.

Eu comentei com este amigo o seu interesse pela genealogia e ele se ofendeu como fosse flagrado praticando uma obscenidade. Qualquer nome ou sobrenome atualmente serve para designar do mais abjeto sujeito ao mais alto magistrado. Não existe mais linhagem, o que existe é um grande pirão humano no qual o descendente de um barão tem tanta importância quando o de um ladrão. E descender de Don Alonso Nuñez de Castro y Leon, que escreveu sobre a vida de São Fernando III em 1673, Rei de Castilla y Leon, pode não ter a relevância que tinha há alguns séculos. Hoje não tem mais título de nobreza, nem os títulos de cidadãos honorários e beneméritos servem para alguma coisa, além de afagar o ego de pessoas próximas ao poder que são agraciadas e olvidam que tais títulos também foram destinados a gente que causou muitos danos à sociedade, comprometendo a integridade e nobreza da honraria.

Se há um título que ainda tem valor é o concedido pela Receita Federal aos cidadãos que se distinguem compulsoriamente na condição de contribuintes do Fisco: ou seja, o número através do qual o cidadão está inscrito no Cadastro de Pessoas Físicas. O famoso CPF. O título de eleitor, se vingar mudanças eleitorais, vai perder a majestade. Ele se transformou em instrumento de entronizar pessoas desprezíveis em cargos de relevância com consequências danosas para a coletividade.

O CPF pode não provar de onde você veio, mas pode provar que você é voc&ecir,c; e não o homônimo que matou e roubou. Ou seja, ele pode não colocar você na corte, mas pode evitar que você vá para a penitenciária – o que já é grande coisa. Antigamente, um nome ilustre colocava alguém num seleto grupo social – hoje o CPF pode garantir a sua liberdade. A verdade é que hoje em dia um homem sem CPF não é ninguém. Ninguém decente, porque se o sujeito não tiver CPF, ele é um suspeito, uma espécie de fugitivo. O CPF é o único titulo social de relevância nos dias hoje.