Talento não foi feito para humilhar ninguém

Jorginho, filósofo popular e esportivo do Portão e arrabaldes costuma dizer: “Bode velho sabe das coisas e bode novo presta atenção, se for esperto”. Hoje tem seus sessenta anos e barriga delineada pelo tempo. Mas foi emérito ponta-direita. Dos atazanados que escapavam até a linha de fundo e quando o lateral pensava que ia cruzar, ele entortava o marcador com dois dribles diabólicos e entrava na grande área levando perigo para o gol adversário. Era para Jorginho ser grande ponta de sua geração, não fosse ele trabalhar em jornal. Não dava para treinar. Não foi escolha, foi necessidade. Faz parte da vida. Mas ele não ficou longe da bola. Saracoteou na suburbana. Ganhou fama, não ganhou dinheiro; ganhou mulher fora de campo e pancada em campo, que beque da suburbana bate mais que lavadeira em beira de rio.

Com fama de craque da periferia da capital, Jorginho apareceu em Porto Amazonas para enfrentar um time amador, o terror das cercanias. O lateral-esquerdo Carniça queria a ficha de Jorginho. Deram o serviço: “Baixinho, assanhado e veloz. É o capeta em forma de guri”. Carniça tinha moral na cidade. Não tinha este nome por acaso. Honrava o nome. Ponteiro que abusava virava carniça. O glorioso Clube Náutico do Água Verde entrou em campo contra o time de Porto Amazonas, a bola rolou, Carniça passou perto de Jorginho e avisou: “Piá pançudo, se quer sair vivo daqui, fica longe de mim”. Jorginho era baixo e gordo, mas não era otário. E não levava desaforo de beque maludo. Ele esperou o momento para mostrar as suas credenciais.

Na primeira bola que lançaram para ele, Carniça foi fedendo para cima de Jorginho, que tirou o corpo e puxou a bola por cima. Chapéu humilhante. A bola caiu na coxa, Jorginho amorteceu. Carniça levantou e foi com tudo. Com o joelho Jorginho deu outro toque por cima, Carniça foi no vácuo e a bola outra vez ficou com o ponteiro. Mais um chapéu. Quando Carniça estava sem reação e mais tonto que o amigo do Zorro, em vez de passar a bola adiante, Jorginho aplicou o terceiro chapéu. Não precisava. Mas fez para mostrar que tinha talento. A torcida, que torcedor tem parte com o demônio, quer ver o circo pegar fogo, gritou: “Pede para sair Carniça, o gordinho te humilhou!”. E foi verdade. Outro torcedor ainda disse: “Vai jogar cacheta e larga a bola, Carniça!”.

Foi o que bastou. Carniça ficou louco. Espumava baba branca pelos cantos da boca. Os companheiros perceberam o perigo e não passavam mais a bola para Jorginho. E quando passavam pediam de volta. E Carniça louco em campo. Se o ponteiro tivesse feito com a noiva do beque tudo aquilo que não pode ser escrito aqui, Carniça não ficava tão furioso. “Rapaz, ele queria me matar”, reconheceu Jorginho. Que corria de um lado para outro sem saber se jogava ou fugia de Carniça. E Carniça atrás de Jorginho implorando aos céus e aos infernos, quem fosse mais rápido, para aparecer uma bola naquela área do campo e dar a ele uma chance de mandar Jorginho para o alambrado, para ele cair com a perna quebrada em sete pedaços.

Primeiro tempo acabou. O segundo passou rápido. Jorginho não viu a bola e Carniça não viu a canela de Jorginho. Terminou a partida, Jorginho correu para o vestiário e se trancou no banheiro. Carniça foi atrás. Ficou na porta do vestiário adversário esperando Jorginho sair para pegar o cara. Jorginho não saiu. Escondeu no banheiro. Em cima da patente para ninguém ver os pés se olhasse por baixo da porta. Todos sairam, menos ele. O time estava no ônibus. Carniça desconfiou que Jorginho escapou disfarçado. Estava em dúvida se estava no vestiário ou no ônibus. Quando o motorista ligou o ônibus, Carniça entrou no vestiário adversário e viu tudo vazio. Ele berrou: “O filho da mãe me enganou”. E correu para o ônibus.

Quando Carniça correu para o ônibus, Jorginho saiu do banheiro e do vestiário e correu atrás. Cena louca. Quando o beque chegou perto do ônibus, o motorista abriu a porta. Carniça não entendeu. A ficha caiu quando viu Jorginho dar o último drible e passar por ele que nem foguete e entrar no ônibus. A porta fechou no ato, o motorista acelerou e quase, passou por cima de Carniça. De pura raiva o beque encheu a cara até cair e depois daquele porre nunca mais jogou bola. Jorginho tirou uma lição que vale até hoje: “Talento não foi feito para humilhar ninguém. Foi feito para usar na hora e lugar certos. Porto Amazonas não era bom lugar para mostrar minha coleção de chapéus”. Lição de bode velho que serve para bodes novos. Firula não ganha jogo.