Nelson Comel chegou agitado naquele dia na redação. Largou a mala e o chapéu ao lado da sua Olivetti, pegou um exemplar da Tribuna e perguntava a quem passasse por ele: – Quem é Heloísa? Como era um brincalhão inveterado, todo mundo ficava ressabiado com a pergunta evitando levá-lo muito a sério. Depois de muito mistério, o veterano jornalista abriu o exemplar do dia 16 de maio de 2004 e lá estava publicado na coluna Hoje na História: “1164 – Morre Heloísa, amante de Abelardo”.

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Ficamos na mesma. Como a coluna tinha sido publicada na página editada por este que vos escreve, a coisa virou para o meu lado. Comel insistia, entre risos: – Quem é Heloísa? Se você não sabe da Heloísa, então pelo menos me explique quem é este Abelardo, divertia-se. Resolvi entrar no clima: – O único Abelardo que conheço é o Barbosa mas não é desta época. Risos gerais.

Comel estava se ocupando do assunto desde o final daquela tarde. Ele costumava fazer “pit stop” no Bar do Popadiuk antes de ir para o jornal e lá o assunto tinha rendido tremendamente. Leitor atento da Tribuna, pescou ali entre tantas coisas publicadas naquele dia a frase enigmática, que merecia uma boa resposta.

No dia seguinte, fui até a Biblioteca Pública com a missão de levantar a ficha de Abelardo e Heloísa. O título da única obra sobre o assunto que não tinha sido emprestada, reafirmava aquilo que fora publicado no jornal: “O Grande amor de Abelardo e Heloísa”, edição de 1992. Li rapidinho as 134 páginas e mentalmente agradecia ao Comel. Graças à curiosidade dele fui apresentado a uma história fabulosa.

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Pedro Abelardo nasceu em 1079, formou-se em filosofia e quando concluiu seus estudos foi morar em Paris. Intelectual brilhante, conseguiu sem esforço emprego de professor na Escola da Catedral de Notre Dame. Impetuoso e combativo, dialético eloquente e de poderoso espírito analítico, exerceu larga influência entre seus contemporâneos e antecipou, segundo vários dos seus intérpretes, o racionalismo que iria irromper com grande força no início da Idade Moderna.

Foi na Catedral de Notre Dame que conheceu a bela Heloísa, sobrinha do cônego Fullbert. Por sinal foi o próprio cônego quem pediu para que o brilhante Abelardo fosse mentor da sobrinha. Os dois logo se apaixonaram, mas o problema é que o cônego não aprovava o relacionamento de jeito nenhum e o casal passou a se encontrar na surdina. Os amores furtivos acabaram por gerar um filho e Abelardo e Heloísa resolveram casar-se em segredo.

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Furioso, o cônego Fullbert contratou “leões de chácara” para castrar o filófoso. Emasculado, Abelardo decidiu se tornar monge e pediu para que Heloísa fizesse votos de freira. Em solidariedade ao amado, ela aceitou e ingressou no convento de Santa Maria de Argenteiul. Abelardo construiu uma escola-mosteiro ao lado do convento de Heloísa. Viam-se diariamente, mas não se falavam.

O filófoso morreu em 1142, com 63 anos. Em sua homenagem, Heloísa ergueu um grande sepulcro. Heloísa morreu em 1164 e uma iniciativa de suas alunas acabou por unir novamente o casal: ela foi sepultada ao lado de Abelardo. E quanto ao Comel? Até hoje ele acha que eu inventei essa história. Quem dera! Se fosse assim, poderia viver de direitos autorais.

* Miguel Ângelo de Andrade publica a coluna ‘Pelas ruas da cidade’ durante as férias de Edilson Pereira.