Em 1966 eu tinha 14 anos quando me caiu na mão um livro de máximas – ou provérbios – em latim. Eu sabia alguma coisa em latim nos anos 60, porque fui coroinha e a missa era em latim. Além disso, estudei em 1963 no Colégio Marista e reforcei o que sabia. E quando não sabia, perguntava. Os professores da rede pública sabiam latim, porque aprenderam na escola. No tempo deles a escola tinha latim, grego, francês e outros idiomas. E muitos professores vieram do seminário, eles passaram bons anos apenas estudando. Eram feras.

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Eu levei o livro de Publio Siro para o professor Raul Pimenta me esclarecer o significado mais amplo de algumas máximas. De uma me recordo até hoje: absentem laedit, qui cum ebrio litigat. O professor me disse que era uma máxima latina que traduzida queria dizer o seguinte: quem discute com um bêbado insulta um sóbrio. Ou seja, quem discute com um bêbado, age pior que o bêbado, porque o bêbado está ausente de si. Resumindo, brigar com bêbado é roubada. Se o bêbado é babaca, quem briga com ele corre o risco de ser ainda pior. Mas o duro é que alguns bêbados são terríveis.

Eu me lembrei disso ontem à noite por causa de dois episódios: era perto das 19 horas quando eu vi uma cena lastimável que quase me levou a tentar um colóquio com um morador de rua, vulgo mendigo. Desisti porque o cara estava bêbado e achei que seria impossível – na hora me veio à cabeça o provérbio latino. Não ia adiantar. O mendigo vinha cambeteando pela Rua Monsenhor Celso, parou diante de um latão de lixo que fica quase na esquina com a Rua Marechal Deodoro. Ele, aparentemente, queria latas de refrigerante ou de cerveja. Só podia ser, porque o latão não estava com aparência de esconder pastel ou coxinha. O mendigo foi tirando o lixo do latão e jogando na rua, para ver se encontrava uma lata no latão.

Aí aconteceu a cena que colocou em xeque minhas convicções. Uma senhora de uns 70 anos se aproximou do mendigo bêbado, encarou o bafo de onça e disse: “Meu filho, para de sujar a cidade que isto não vai resolver o teu problema. Tome cinco reais e cai fora daí. Eu pago para você parar com esta sujeira. Eu pago para você não sujar a cidade.” O sujeito pegou o dinheiro e foi embora cambaleante. A mulher olhou o lixo no chão e balançou a cabeça tristemente e depois foi embora. O mendigo também foi, mas eu não estranharia se lá na frente o sujeito tentasse esvaziar outro latão de lixo em busca de latinhas de refrigerante e cerveja. Fui embora com dúvida: “Caramba, será que vale a pena dialogar com bêbado?”. A minha certeza anterior estava em xeque.

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Cheguei à Praça Tiradentes para pegar o Mateus Leme e aparece outro mendigo bêbado na porta do ônibus. Embaixo de um abrigo, tinha mais dois dormindo. Estavam cozidos. O que estava na porta do ônibus pedia dinheiro para todo mundo. Ninguém deu, talvez porque parte era gente pobre que só tinha o dinheiro da passagem. Chegou a vez de uma senhora até bonita, que respondeu: “Desculpe, mas eu não tenho!”. Foi aí que a velha convicção voltou. O mendigo bêbado fez o maior discurso, com bafo de pinga e saliva respingando: “Eu não aceito esta resposta. Diga que eu não quero dar, que é mais digno. É mais decente e mais honesto. Mas não diga que eu não tenho. Porque eu tenho certeza de que a senhora tem”. Com talento para ser político e o cara estava mendigando.

O ônibus era daqueles que em que o motorista dirige e cobra, a fila andava devagar e o mendigo esculhambava a mulher na porta do ônibus. Ela não revidava e não dizia nada porque o mendigo estava bêbado. E ela sabia que não valia a pena discutir com bêbado. Resumo da ópera: de tanto ouvir a esculhambação, ela entrou no ônibus humilhada e ofendida. Estava quase chorando. A porta fechou e pelo vidro eu vi que o mendigo ir para o lado de outra dona, agora na fila do Vila Suíça. O ônibus entrou em movimento. Começou a cair uma garota fina e insistente. Eu pensei em dizer para a mulher: quem discute com um bêbado, insulta um sóbrio. Mas não tive coragem.

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