Eu peguei o ônibus Água Verde-Abranches às 7 horas da manhã, projetando em vinte minutos estar na Praça Rui Barbosa para pegar outro ônibus para o Uberaba. Era a opção mais interessante. A alternativa era ir de Inter II até o Terminal Hauer e de lá entrar no alimentador Hauer-Uberaba. Entrei no ônibus na Mateus Lemes. Tranquilo. Olhei pela janela e pensei: “Como a tranquilidade é boa!” Pessoas serenas, algumas com expressões vagamente pensativas. Até mais adiante o ônibus parar num ponto e entrar uma horda de bárbaros ruidosos. Eram dez ou doze.

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Entraram com palavras de ordem, berrando, falando ao mesmo tempo e se entendiam na torrente caótica de expressões chulas e vulgares, de berros e ganidos, de gemidos e urros, de uivos e zurros. Com aqueles dialetos guturais que surgem nos labirintos das metrópoles, eles se comunicavam. Um verdadeiro milagre de entendimento: “É isso aí, mano! Tu tinha que rebentá o vagabundo!”. Riam riso agressivo como se num instante tivessem dominado o ônibus a exemplo de um bando de piratas saqueadores. Não era preciso ser João Evangelista ou Nostradamus para prever que o resto da viagem ia ser terrível. Ia ser um pequeno Apocalipse. E foi.

Aqueles piratas saquearam a tranquilidade e a paciência das pessoas que estavam no ônibus. E todas ficaram reféns, incluindo o motorista que não podia fazer nada e o cobrador que não tinha o que fazer. Um especialista em idiomas e dialetos certamente ficaria fascinado em ouvir a comunicação entre os integrantes do grupo. Quer dizer, se ele conseguisse ouvir com nitidez, porque os caras berravam tanto, que pareciam de uma hora para outra organizar uma competição para apurar quem falava mais alto. A tática de falar alto muitas vezes esconde a intenção de sufocar o interlocutor. Como o outro vai ouvir se o sujeito está berrando mais alto que ele.

As pessoas ao redor que não tinham interesse na olímpiada de ruídos vocais ficavam angustiadas. Qualquer civilizado teria dificuldade em entender o que falavam e, no entanto, eles falavam. Não era conversa normal. Era um tiroteio verbal em que todo mundo dizia coisas ao mesmo tempo como num coral expressionista acompanhando a música atonal de Arnold Schönberg. Ou seria dodecafônica? Mas, por que berrar se se entendiam? Boa pergunta. Talvez fosse um roteiro expressionista. A muvuca sonora quase fez uma velhinha desmaiar e o motorista por pouco perdeu o controle do ônibus.

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O caos a certa altura desembocou na agressão mútua. Dois bárbaros se desentenderam por que um deles lembrou que “lá na parada”, “tá ligado”, “no lance da coisa”, o outro quis enfiar a mão na cara dele. O outro não se lembrava, porque tava doidão e se desculpou: “Chi, mano, se foi isso, foi mal. Me desculpa aí, tá ligado. Eu devia tá muito doidão”. O outro não aceitou a diplomacia: “Mas eu não tava doidão e vi que tua mão fechou na minha cara. Se eu não fosse esperto, tu tinha me rebentado os cornos, mano”. O outro não queria guerra: “Chi, mano, se foi assim, foi mal. Mas ocê é meu irmão. Me desculpa aí, tá?”. “Mas se tu me rebentasse a cara, mano?”. “Chi, aí ficava mal, né mano!”. “Agora eu tou com vontade de rebentar a tua cara, mano”. “Se ocê tá, então vem, né mano. Mas eu não vou dar mole. Eu te rebento também”.

Eu pensei: “Era o que faltava! Agora o bicho vai pegar.” E os passageiros indefesos porque não existe proteção contra agressores desta natureza para as pessoas que usam o transporte coletivo. Mas aí aconteceu o milagre. A Praça Rui Barbosa apareceu no horizonte para nos salvar. O ônibus parou e os manos desceram. E os dois que iam se arrebentar esqueceram até o que estavam falando e foram embora abraçados e rindo alto. O mais triste, depois que saíram, foi ver uma velhinha chorar – ela simplesmente desabou. A tensão foi demais. Eu fiquei deprimido. O dia começava. E eu tinha que pegar outro ônibus para o Uberaba.

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