Numa tarde de domingo de 1993, no estádio do Pacaembu, em São Paulo, o centroavante Viola fez um gol para o Corinthians e para comemorar, ele correu para um orelhão atrás do gol adversário. Simulando ligar para a mãe, pegou o fone e anunciou: ‘Mamãe, este gol eu fiz pra você‘. Naturalmente que a cena tinha destino: os cinegrafistas das emissoras de televisão sempre em busca de lances inusitados, que o telespectador quer nos programas esportivos após os jogos e no Fantástico ver mais que gols, porque estes ele vê na transmissão direta.

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Eu evoco esta cena para, à maneira dos cineastas, fazer um corte brusco no passado e pular para o presente, para focar este personagem impoluto, onipresente e necessário, nos anos 70, 80 e 90, tanto que muitas vezes faziam filas diante dele nas ruas da cidade: o orelhão. O orelhão da Telepar, concessionária da Telebrás, empresas estatais de telefonia. Os celulares não tinham aparecido na cena urbana e a única forma de telefonar da rua para casa ou para o emprego era ir ao orelhão. O orelhão era tão importante que muitas cidades do interior chamavam o governador para inaugurá-lo na praça central. Unidade que atendia todos que não tinham telefone.

Nas cidades grandes, o número de orelhões cresceu até que havia um em cada esquina. Os cartões telefônicos eram populares e as pessoas faziam coleções, como se faz com selos. Eles estampavam cidades, quadros, flores, enfim, uma série de recursos para torná-los atraentes ou uma forma de diferenciar os velhos usados dos novos ainda com fichas para serem gastas. Na metade dos anos 90, o celular apareceu em cena. Primeiro na forma de tijolão preto, horroroso, pesado, que as pessoas carregavam pendurados na cintura, como pochete desengonçada. Ter celular era para poucos: fazendeiros, políticos, empresários. E quando eles atendiam o trambolho na rua, todo mundo discretamente prestava atenção.

Aquilo era novidade, surpresa, porque telefone por muito tempo foi patrimônio. Sim, muitas pessoas compravam telefones fixos como investimento. Com dois ou três telefones, o sujeito podia fazer caixa para comprar um carro. Ou então, alugava o telefone e tinha renda mensal. Se o sujeito tivesse três aparelhos ele tinha rendimento mensal equivalente ao aluguel de um apartamento, porque a oferta de telefone fixo era menor que a procura. Não havia interesse em atender a demanda, porque sempre houve gente que ganha com o atraso do país. Resumindo: as privatizações dos anos 90 tiraram o telefone fixo da condição de patrimônio, quem tinha telefone fixo vendeu e quem não vendeu perdeu dinheiro.

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As telefônicas entraram com tudo no mercado, investiram pesado no celular que virou carne de vaca. Hoje qualquer criança nem sabe falar, mas já tem celular para ela dizer bilu-bilu para a mãe ouvir. Gente fala ao celular do banheiro do shopping ao busão em movimento para o Tatuquara. E o telefone público? E o orelhão? Claro que ele perdeu a importância que tinha. A maioria virou sucata. O mais curioso é que ainda existe na cidade, em vários pontos, mas tão abandonados, que dá pena. O orelhão é o bêbado da telefonia brasileira. Está na sarjeta e ninguém dá bola. Os das praças ainda estão em condições razoáveis, mas os das ruas viraram sucatas em cujo interior as pessoas grudam pequenas propagandas. Em São Paulo, artistas resolveram pintar os orelhões para torna-los atraentes. Uma ideia interessante. Mas que não encontrou eco por aqui. Embora de uso restrito, eles ainda são uteis.   

Um dia destes, eu passei perto de um e ele tocou. Como não havia ninguém perto eu atendi por curiosidade. Tirei o fone do gancho, levei ao ouvido e disse: ‘Alô?‘. Uma voz, que me pareceu gravação, respondeu: ‘O cadáver que plantaste no ano passado em teu jardim já começou a brotar? Dará flores este ano? Ou foi a imprevista geada que o perturbou em seu leito?‘ E desligou. Parecia coisa de assombração. Levei um susto, coloquei o fone no gancho e fui em frente. Aquilo me parecia familiar. Mas eu não conseguia lembrar. Não parei de pensar naquilo o resto do dia. Até que no começo da noite, em casa, eu tive um estalo, corri, para a estante e peguei um livro. Estava lá. Era um poema de T. S. Eliot. Os orelhões, embora velhos, sujos e abandonados, ainda têm a capacidade de nos surpreender.

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