Alguns amigos meus foram trotsquistas na juventude. Outros anarquistas e muitos stalinistas. A maioria que estava em um grupo nutria ódio tão honesto e autêntico pelas pessoas de outro grupo, que provocava ciúmes nas pessoas de direita. Afinal, os direitistas achavam, com razão, que deveriam ter o privilégio ao ódio dos esquerdistas. Mas, na prática, a coisa não funcionava assim. Neste aspecto, os direitistas sempre foram coerentes: eles gostavam de sua turma e odiavam todos os esquerdistas. Talvez por isso, durante muito tempo, tiveram sucesso.

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Mas sempre tem alguém que é exceção em qualquer regra. Augusto Cesar Mota dizia que era anarquista, gostava dos trotsquistas e se dava bem com os stalinistas. Foi assim de meados dos anos 70 – e até hoje conserva amizade por gente daquela época, dos mais variados matizes ideológicos, derrubando a velha tese ou desconfiança que eu tinha de que toda simpatia na realidade era uma forma de se precaver para pegar boquinha no futuro, se algum militante de esquerda viesse a ser político importante, com poderes de nomear gente para cargos que remuneram bem. Como estas coisas sempre acontecem, eu achava que estava certo. No caso de Mota, errei. Ele teve chance de se dar bem e não se locupletou. Ao contrário de outros bicos doces, que ainda estão por aí enganando o eleitorado. E trocam de lado sem cerimônia, se isto representar continuar no bem bom.

Por esta razão, ainda tenho amizade com Mota. Ele passou por Curitiba dia destes e parecia que morava na cidade há anos. Sempre aparecia um velho conhecido para dar um abraço – ele morou em Porto Alegre, Curitiba, São Paulo e Londrina. Até que viu uma traveca na Rua XV: a dona usava capote marrom (era tarde de calor infernal), boina marrom com estrela vermelha no alto, broche de foice e martelo na lapela e bota feminina preta. Parecia uma coronela do Exército Vermelho. Todo mundo tem o direito de ser ou não ser comunista – mas para mim aquilo já era esculhambação. E para minha surpresa, Mota reconheceu a tipa: “Bastião, você por aqui?”. O nome do travesti era Sebastião. Eu ouvi, mas não acreditei.

Bastião abriu os braços e veio em nossa direção, quer dizer, na direção de Mota, que eu não tinha nada com aquilo: “Querido, há quanto tempo!”. A voz não era grossa, nem fina, era rouca. Eu fiz cara de quem não estava para brincadeiras. Não é preconceito, mas não dá para fazer festa com estranhos. Com um tipo usando capote num verão escaldante. E ainda mais bolchevique. No entanto não pude deixar de ouvir Sebastião Medeiros da Costa contar um pedaço de sua vida de líder estudantil no Nordeste, ex-militante do PCdoB nos anos 80, homossexual assumido no começo dos anos 90 e agora travesti militante. Saiu do armário de punho cerrado e sexo trocado. Mudou de sexo, mas não arrancou a ideologia.

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Naquela altura eu achava que aquele sujeito era o último Bastião do socialismo. Bastião morava em Porto Alegre e atendia pelo codinome Tiana Dietrich. Eu pensei o que o camarada Iosif Vissarionovich Djugashvilli diria se visse aquela ativista. Acho que Mao Tse Tung e Fidel Castro iam ficar de cabelo em pé. O final da conversa eu interpretei como indireta para a minha cara pouco simpática. Falaram do final da novela que teve beijo de homem na boca. Tiana Dietrich viu aquilo como algo semelhante à Revolução de Outubro. “Os preconceitos estão acabando, uma nova moral com tolerância está sendo construída, querido. O mundo vai ser melhor”, disse. Mota, como era de seu feitio, concordou com tudo. Eu fiz de conta que eles conversavam em armênio e eu não entendia nada do que diziam. Quando ela foi embora, eu disse para Mota: “Eu queria ver esta dona na União Soviética. Nos anos 30. Era Sibéria na certa”.

Mota disse que eu era intolerante. Eu respondi que o comunismo acabou. E Tiana Dietrich certamente era o último Bastião do comunismo. Ou do socialismo. De qualquer forma foi o último Bastião que conheci.

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