O engenheiro aposentado Wilson Delgado há algum tempo não vai mais à Biblioteca Pública para as suas partidas de xadrez. Durante muitos anos ele podia ser encontrado no segundo andar, nas proximidades da ala de revistas e jornais. Uma ala silenciosa, tanto leitor de jornais, quanto jogadores de xadrez são cultores do silêncio. A princípio seria de ficar preocupado porque embora pareça irrelevante, o xadrez tem importância na vida de um velho, por ser uma forma interessante de preencher o tempo, além de exercício para o intelecto. Se não for, pelo menos a pessoa fica quieta em seu canto sem amolar – e também sem ser amolada.

continua após a publicidade

No caso de Delgado, Gerson ficou com remorso, porque ele se sentiu culpado pelo afastamento do amigo da biblioteca. Onde o velho era feliz. Gerson se lembrou de quando o encontrou há alguns anos e o velho estava exultante por executar um movimento digno de grande mestre internacional, ainda que o adversário não fosse grande coisa. Depois disso ele veio contar que numa manhã estava tão concentrado em uma partida e, de repente, parecia estar ouvindo gemidos de dor. Wilson Delgado olhou para os lados e as pessoas liam jornais e o máximo de ruído que faziam era o de dobrar jornais ou de manusear suas folhas.

Gerson disse que era impressão. Delgado insistiu que tinha ouvido gemidos. Gerson disse que quando a pessoa se concentra muito e não há ruído por perto ela tem a impressão de estar ouvindo coisas – ele tem facilidade enorme em criar teorias absurdas. Como Delgado insistisse em ter ouvido gemidos, o amigo disse que poderiam ser gemidos de almas penadas. Delgado respondeu que era bobagem. Gerson contou que naquele lugar foram torturadas pessoas no fim do século 19. Delgado se interessou pela história e perguntou como alguém poderia torturar uma pessoa no interior de uma biblioteca. O amigo contou algo que talvez outras pessoas não saibam: antes de ser a Biblioteca Pública do Paraná, o terreno do prédio majestoso no centro abrigou o Teatro Guaíra.

Nada espantoso. Estas mudanças ocorrem em cidades centenárias. No entanto, o Teatro Guaíra foi centro de tortura durante a Revolução Federalista, quando Curitiba foi invadida por maragatos do coronel Gumercindo Saraiva e depois por pica-paus do coronel Pires Ferreira – em seguida houve lei marcial e execuções. Gerson disse que tudo aquilo era história. Após o fim do conflito, o Teatro Guaíra foi reformado, abrigou espetáculos, ficou velho e foi demolido. Então, em seu lugar, algumas décadas depois, a biblioteca foi construída. Delgado ficou impressionado com a informação. Tudo, de repente, fazia sentido.

continua após a publicidade

E nunca mais ele foi um grande jogador de xadrez contra os seus amigos da biblioteca. Ele se concentrava, mas continuava a ouvir gemidos cada vez mais angustiantes. Certa ocasião ele perguntou para seu adversário: “Você não está ouvindo estes gemidos?” O sujeito disse que não. E para não ficar maluco Delgado parou de jogar xadrez na biblioteca. Ele jogava em casa e parou de ouvir os gemidos. Gerson pensou em contar uma história macabra a respeito da rua em que Delgado morava – ele sabia de dois ou três casos assustadores – mas achou que seria maldade. Delgado ia começar a ouvir novos gemidos e iria querer vender a casa e se mudar. Gerson se calou.

Gerson presumiu que algumas pessoas tem sensibilidade aguda. Elas ouvem coisas que as pessoas normais não ouvem. Talvez Delgado fosse um caso assim. Talvez Allan Poe definisse melhor o problema de Delgado. Talvez ele fosse maluco ou estivesse ficando senil. De qualquer forma, depois disso, Gerson decidiu tomar cuidado ao contar estas histórias que envolvem almas penadas. Como, por exemplo, a do castelo da Anita Garibaldi, que foi sanatório e Gerson garante foi esconderijo de nazistas depois da Segunda Guerra Mundial. Ele jura que nos subterrâneos do castelo existem até labirintos. E, talvez, um monte de esqueletos nazistas. Mas ele me garantiu que não vai contar isso para ninguém.

continua após a publicidade