O certo é que Moisés e Davi podiam ser gagos

O maior locutor de rádio de todos os tempos foi Yuri Borishovich Levitan, um soviético judeu, filho de alfaiate com dona de casa. Ele começava seus programas com o bordão: “Atenção, Moscou está falando!” Todo mundo calava a boca. Nem Stálin conseguiu tanto respeito dos milhões de soviéticos – e olha que Stálin mandava matar quem não prestasse atenção no que ele estava falando. E dizem que Adolf Hitler o odiava. Tanto que segundo a lenda, mandou sem sucesso matá-lo através de atentados inúteis. Os soviéticos o escondiam. Ele era um herói nacional. Sua voz era reconhecida em qualquer lugar da União Soviética.

O segredo de Levitan é que as pessoas queriam ouvi-lo. Ele era sinônimo de notícia. Notícia fresca e com credibilidade. Ele não precisava pedir atenção. A simples emissão de sua voz implantava uma atmosfera de seriedade e respeito. Levitan anunciou vitórias dos russos contra os nazistas, derrota da Alemanha, morte de Stálin e o primeiro voo espacial tripulado. Quem me falou de Yuri Levitan foi Praxedes de Carvalho, um locutor que apareceu em Maringá no começo dos anos 60 para trabalhar na Rádio Atalaia e que ficou pouco tempo na cidade.

Carvalho tinha duas peculiaridades originais. Ele achava que era judeu, embora não frequentasse sinagoga, e segundo os amigos mais observadores sequer era circuncidado. Ele se defendia alegando que era judeu desgarrado e sem comprovação, se é que existe a categoria. E gago. Eu nunca conheci um judeu gago. Muito menos um locutor gago. E ainda muito menos um locutor judeu gago. Os amigos diziam para ele que não existiam judeus gagos. E argumentavam: “Imagine Moisés descendo do Monte Sinai para anunciar o décalogo. Se fosse gago estava lá até agora”. Outro acrescentava. Todo mundo achava graça, mas Carvalho não ligava.

Ele seguia ritos judaicos de forma que achava que eram e que sempre me pareceram que não fossem – e como naquela época entendíamos tanto de ritos judaicos quanto de regras de beisebol, ficava o dito pelo não dito. Carvalho usava palavras em iídiche (dialeto falado por populações judaicas da Europa) para impressionar, embora eu não conhecesse uma palavra em iídiche. E porque ele achava que era judeu? Porque sua ascendência familiar remontava há mais de 400 anos no Brasil. E como não era negro, não era índio e tampouco a família não ganhou latifúndios do rei de Portugal, a conclusão era que só podia ser descendente de judeus que fugiram de perseguições na península ibérica. O Carvalho no nome, para ele sacramentava. Até aí tudo bem. No fundo todo mundo achava que Carvalho era tão judeu quanto a jaca era irmã do jacaré. O que valia era a gandaia de um lado e a insistência do locutor de outro.

Outra coisa. Ninguém acreditava que Carvalho fosse locutor, coisa nenhuma. Gago daquele jeito seria um vexame. Ainda mais narrar uma partida de futebol. Mas ele foi desafiado a narrar um jogo do Grêmio contra o Cambará no dia 30 de maio de 1965, um domingo, no Willie Davids. Pior: ele aceitou. Até a concorrência ficou ligada para ouvir o fiasco. Carvalho foi lá, narrou e não gaguejou. O jogo foi 7 a 0 para o Grêmio. Ele abriu a goela sete vezes: “É gooolll do Galo do Norte, torcida maringaense!”. Não gaguejou em nenhuma. Ele provou que era bom. E que na hora do vamos ver, não gaguejava. Foi aí que se criou uma terrível dúvida entre nós: todos sabiam agora que ele estava certo. Que era locutor, embora fosse gago. E mais: ele podia ser judeu. Mas nem isso era tão terrível quanto a suspeita seguinte: “Será que Moisés era gago? Ele podia descer do Monte Sinai, anunciar o decálogo sem gaguejar. Como Carvalho fez no Willie Davids”. E o mesmo podia ter acontecido a Davi, encarar Golias sem gaguejar. O diacho é que os escribas dos livros sagrados não entram em detalhes. Mas depois daquele dia ficou a suspeita entre nós de que Moisés e Davi podiam, sim, ser gagos. Por que não?