O campeão que foi derrotado por Nocaute

Bandidos quando envelhecem ficam serenos e olham em nossos olhos como se arrependessem do que fizeram – mas é só impressão. Muitos envelhecem convictos de que fizeram a coisa certa. Como Edvaldo Moraes de Lima, o Brilhantina, que encontrei por acaso na Praça Tiradentes olhando desinteressado um grupo de peruanos tocar El Condor Pasa, música que parei para ouvir. Ele me encarou, se aproximou e disse: “Eu te conheço”. Eu perguntei: “Como vão as coisas, Brilhantina?”. Ele repetiu a pergunta: “De onde eu te conheço?”. Eu menti. Eu disse que o entrevistei há mais de vinte anos. Depois que ele saiu da penitenciária. Na realidade, em nem morava em Curitiba na época. Mas eu li sobre ele nos anos 70, se não me engano num jornal que não existe mais, O Diário do Paraná. Foi há muito.

Ele ficou calmo e disse: “Hoje estou em outra”. Quase que eu disse: “Daqui a pouco é que você vai para outra, meu chapa!”. Pelos meus cálculos, Brilhantina estava beirando os oitenta. Por mais otimista que fosse, uma hora a festa acaba e a luz apaga. Mas não disse nada. Brilhantina estava em outra, mas tinha energia para apertar um gatilho. Que foi o seu negócio. Ele me pediu para pagar um pastel e eu caminhei com ele na direção de A Brasileira, na frente da Biblioteca Pública. Olhei o edifício que abrigou o Hotel Eduardo VII e indaguei: “Você lembra?”. Ele respondeu: “Você não esquece? Ninguém mais se lembra disso”.

Quem lê jamais esquece. Eu perguntei: “Por que matou Nocaute?”. Ele balançou os ombros e disse como velho pistoleiro diria: “Por que o Chefe mandou”. Eu disse: “Mas ele te abandonou”. Ele parecia não se importar: “Os chefes às vezes nos abandonam. Faz parte da vida”. Caminhamos o resto do percurso em silêncio. Eu pensei em Nocaute e em sua breve glória. O polaco magrelo das Mercês batia forte. Ele queria entrar para o mundo do boxe. Mas quem via o franzino Nocaute não apostava um centavo que ele tinha jeito para suportar um assalto em cima do ringue. E talvez não tivesse. Agora, que ele batia forte, era fato.

Então, para mostrar para o Chefe que ele merecia uma chance, Nocaute arrumou uma encrenca com o campeão num fim de noite na saída do Eduardo VII. O campeão era chamado de campeão porque ganhou um torneio em Porto Alegre. Estava por cima. Usava terno, todo cheio de panca, namorava cantora de boate. Só fumava cigarro com filtro e tomava vermute. Nocaute era apenas um polaco encardido, de cabelos ruivos e muita vontade de brigar. Nocaute provocou e o campeão foi para cima de Nocaute que mostrou agilidade, desviou duas vezes e no jogo de cintura ficou em posição boa para o contragolpe. Ele desferiu um direto de direita no queixo do campeão que desmoronou ali na calçada em frente ao hotel.

Quando o Chefe foi ver o que acontecia no lado de fora do hotel, Nocaute estava com o pé direito na barriga do campeão que ficou derrubado na calçada. O chefe ficou uma fera. O medo dele era alguém ver o campeão naquela posição humilhante e a fama do cara ir para o ralo – e com ela o dinheiro que o Chefe esperava ganhar. O Chefe pediu para o porteiro ajudá-lo a arrastar o pugilista para dentro do hotel, enquanto disse para Nocaute cair fora. Na pastelaria, enquanto Brilhantina comia um especial de ovo com carne moída e tomava refrigerante eu perguntei se precisava matar Nocaute. Ele respondeu: “Claro, aquele polaco linguarudo ia espalhar para todo mundo que derrubou o campeão. O que era verdade. Mas se fosse num ringue, ele não aguentava dois assaltos”. Podia ser verdade. Mas podia ser mentira. O certo é que o Chefe contratou Brilhantina para fazer o serviço e depois deu um jeito de o pistoleiro ir para a cadeia, para não ficar de testemunha. O que não adiantou nada: alguns meses depois o campeão foi disputar uma luta importante contra o argentino Miguel Angel Botta em Buenos Aires e levou o maior cacete da história. E todo o dinheiro que o Chefe esperava ganhar virou fumaça de cigarro em boate: sumiu. O Chefe ficou tão furioso que nem trouxe o campeão de volta e ele acabou virando porteiro da noite do Sarmiento Palace Hotel, na Sarmiento, 1953. Mas a esta altura, Nocaute estava morto e Brilhantina estava na cadeia.