Ninguém deu um pio até o fim da viagem

Quando num dia seco o sujeito entra no ônibus e o chão está molhado, não tem erro: alguém vomitou e o cobrador ou o motorista teve que improvisar, jogou um balde de água para a porcaria escorrer para a rua. Tem gente que faz serviço mal feito e joga serralho. Não resolve e ainda fede. Água com sabão lava tudo. Eu peguei um Jardim Chaparral e o chão estava molhado. O motorista olhou o chão, me olhou e respondeu: “Foi uma criança que passou mal”. Acontece. Eu subi, passei a catraca e sentei num banco ao lado de Adílio Menegoso, aposentado que mora perto do Abranches e diz que jogou no Primavera há mais de 50 anos.

Depois de jogar bola, Menegoso foi motorista de ônibus. Mal sentei e ele disse: “Sorte que foi criança, podia ser pior”. Como não me interessei e não perguntei – claro que cogitei que existem dezenas de coisas piores que o vômito de uma criança no chão do ônibus -, ele emendou: “Podia ser de bêbado. É a coisa mais terrível. Pior se for no cangote do motorista”. Eu não sei de onde Menegoso tirou a ideia, mas desconfiei que era coisa do tempo em que trabalhou. Bingo! Não precisei perguntar, porque ele contou.

Contou que no tempo em que trabalhou de motorista de ônibus, um bêbado entrou. Não era um bêbado qualquer, era um tão miado que não conseguia falar. Os olhos morteiros até pareciam dois olhinhos de galã apaixonado pela mocinha. “Ele subiu e fiquei preocupado, com medo de ele cair para a rua, quebrar a cabeça e a conta sobrar para mim. Assim que entrou, fechei a porta”, disse Menegoso. A porta fechou e foi uma tortura para o bêbado subir os degraus e outra maior até chegar até o banco para sentar. “Ele ia e voltava e eu tomava cuidado para não fazer manobra brusca e o bêbado se esborrachar”.

O bêbado sambou que nem mulata assanhada na passarela, dançou mais que Garrincha na frente do lateral-esquerdo e fez bêbado coisa que Vaslav Nijinski só conseguia depois de muito ensaio e concentração. Fez que foi, mas não foi, ameaçou ir e voltou, deu uma pirueta com um pé no chão e outro no ar e ainda assim não caiu. “No que ele voltou, virou a cabeça pra mim. Eu de olho no trânsito, outro no retrovisor. O filho da mãe nem fez cara feia. Só disse oh!”, contou Menegoso. Eu perguntei: “Oh?”. Menegoso explicou: “Oh! E saiu um jato quente no meu cangote”.

A narrativa deixou uma senhora no banco da frente tão nauseada que ela se levantou e foi para o fundo do ônibus. Preferiu ficar em pé o resto da viagem do que ouvir o resto da história. Menegoso continuou: “Rapaz, aquilo me deixou tão injuriado que eu quase subi num poste. Minha mulher lavava três mudas de camisas para seis dias e aquela era a última. Foi terrível. A pior de todos os anos em que trabalhei de motorista”, contou. E, por fim, arrematou com toda sua experiência: “Não há nada mais nojento que um negócio deste. Pode ter igual, mas pior não”.

Eu quis saber como é que Menegoso fez para continuar trabalhando todo sujo de porcaria. “Eu fui até o ponto final, como um herói da Segunda Guerra Mundial, que não desiste de sua missão. Primeiro a missão, que os passageiros não podiam esperar. Depois, lá na Tiradentes, eu me lavei no banheiro de um bar, lavei o chão do ônibus, tirei a porcaria que o bêbado jogou na camisa, joguei a camisa num saco de papel e comprei outra camisa barata num bazar que tinha perto da praça”, disse. Quanto ao bêbado, ele foi para um banco da praça e ficou lá. “Na viagem de volta eu estava nervoso. Aí, apareceu um engraçadinho que gostava de falar mal de motorista e de ônibus.  Meti o pé no freio que quase meia dúzia saiu voando pela janela. Parei o ônibus e berrei para todo mundo ouvir: se alguém acha que é mole isso aqui pode pegar o volante e assumir o comando. Ou pega ou fecha o bico que hoje eu estou com a macaca”. Eu quis saber a reação dos passageiros. Ele disse: “Ninguém deu um pio até o fim da viagem”.