Meu tio estrangulou o irmão de James Dean

O quati é um mamífero que vive do Arizona ao norte da Argentina – ou seja, o quati não é latino-americano, ele é pan-americano. No ano passado estive na casa de minha irmã, em Foz, e fui ao Parque Nacional do Iguaçu. Acho que foi o lugar em que mais eu vi quati na vida – em quantidade, todos juntos, assanhados. E os turistas ficavam fascinados. Uma turista russa fotografava tudo o que encontrava, até uma pequena lagartixa que naquela imensidão e exuberância não passava de mera coadjuvante. Os turistas chineses ficavam loucos. Eram os mais ruidosos, em bandos, expressando-se nos mais variados dialetos do mandarim, incluindo as oito tonalidades do cantonês.

De repente uma chinesa viu um bando de quatis e começou a saracotear na minha frente e como ela falava um dialeto chinês que eu não conhecia – aliás, eu não conheço nenhum -, eu não sei se ela cantava o hino nacional ou se ensaiava um samba enredo em chinês. O certo era que ela saracoteava enquanto dizia algo que sonoramente seria mais ou menos assim: ‘Genchi mieli ding dong wu‘. O marido chinês ria. E o quati não entendia. O quati me olhou desesperado, como se eu pudesse traduzir chinês para ele e eu fiquei com uma tristeza profunda. Porque eu me lembrei de um quati que eu tive na infância, em Maringá. Este é um dos terríveis dramas em meus anos de formação.

Quem o levou para casa foi meu tio que o encontrou juntamente com outro da espécie. Os dois foram atravessar uma estrada que liga Cianorte a Maringá. A estrada cortava uma floresta nativa à época, que pertencia à Companhia Melhoramentos. Meu tio quase os atropelou com o seu Jeep verde produzido pela Willys Overland do Brasil. Como ele conseguiu capturar os bichos, até hoje eu não sei. E se meus primos não sabem, ninguém saberá porque meu tio morreu no século passado. Ele apareceu com os dois bichos em casa. Um ficou para ele e outro para nós. O nosso era rebelde e o apelidei de James Dean. Ele não reclamou. O outro eu apelidei de Marlon Brando, mas meus primos ignoraram o nome de astro que eu dei ao bicho.

O quati se alimenta de minhocas, insetos e frutas. Talvez o hábito explique porque ele se deu bem em casa. No final dos anos 50 e começo dos anos 60, minhoca, inseto e fruta eram o que mais havia nos arredores e arrabaldes. No fundo de casa, havia uma espécie de pomar. Até nos terrenos baldios vizinhos havia minhocas, insetos e frutas. Era um banquete para ele. Sem contar que o cardápio do quati também aceita ovos, legumes e lagartos. Tudo isto também havia de montão nas proximidades. O quati não gosta de água, embora saiba nadar com certa desenvoltura. Tudo bem. Maringá tinha uns riachos mixurucas que hoje certamente devem estar poluídos ou mortos.

Outro detalhe que contribuiu para a boa convivência. O quati se adapta bem ao cativeiro. O folgado do James Dean ficou numa boa em casa. Agora, o quati tem um hábito silvestre: ele costuma dormir no alto das árvores, enrolado como uma bola. E não desce antes do amanhecer. O que parece ser irrelevante teve grande importância no caso de James Dean. Ele ficou confinado na despensa no fundo de casa e uma noite subiu no teto para dormir; quando acordou ele pulou do outro lado da viga em que estava. Como estava amarrado a uma corrente presa ao chão, ele ficou pendurado feito Tiradentes e morreu enforcado. Por ironia isto aconteceu em abril. Eu espalhei que James Dean foi o primeiro quati mártir da independência. Dos quatis, claro. E o enterrei com os olhos marejados. Eu e James Dean éramos bons amigos.

Quando soube que James Dean morreu enforcado, meu tio fez o maior escarcéu. Fez discurso sobre os direitos dos animais, sobre minha indiferença e descuido, meu tio parecia pastor luterano ensandecido. No entanto, o mundo dá mais voltas que chapéu mexicano em parque de diversões. Um belo dia Marlon Brando reagiu com inesperada rebeldia a um cafuné de meu tio e lhe mordeu a mão. E meu tio se esqueceu de todo o discurso que me fez sobre os direitos dos animais. Ele pegou a corrente e estrangulou o quati na frente dos filhos que entenderam a execução como um recado, como dissesse: ‘Eu não estou para brincadeiras e não tolero malcriações!‘ A cena do estrangulamento de Marlon Brando descrita pelos meus primos me impressionou e foi uma grande li&cc,edil;ão. Foi um choque tão grande que com o tempo eu me esqueci qual foi esta grande lição, mas a morte de Marlon Brando estrangulado pelo meu tio eu nunca esqueci.