Algumas ruas ficam no coração da gente. A Rua Mem de Sá em Maringá porque morei nela 26 anos. A Rua Piauí em Londrina porque trabalhei nela dez anos. A Avenida João Gualberto porque me pareceu familiar quando eu me mudei para Curitiba em julho de 1971, na primeira vez em que morei na cidade. Em São Paulo foram muitas ruas inesquecíveis: a Conselheiro Brotero em cuja pensão eu vi pela primeira vez um realejo com macaco e tudo embaixo de minha janela. E daquela janela eu ainda vi com prazer a atriz Monique Lafond acenar para cima, quando ela deu carona para um amigo comum. Foi nesta rua que conheci o ator Jofre Soares. Ele tinha um Interlagos. No entanto, a que insiste em ficar na memória é a Alameda Barão de Limeira, onde trabalhei dois anos.

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A impressão que tenho é a de que eu vi um pedaço do Brasil passar por aquela rua – vamos chamar a alameda de rua, porque eu não vi diferença entre uma e outra – de 1978 a 1980, quando o Brasil começava a mudar de cara. Um dia cheguei para trabalhar, um senhor de terno marrom escuro encostado na parede com o cigarro apagado me pediu: “Tem fogo?”. Na época eu fumava. Carlton. Tirei meu isqueiro com uma estampa do cigarro Camel, acendi o cigarro do sujeito e perguntei: “Parece que eu o conheço de algum lugar”. Ele respondeu: “Provavelmente. Eu sou Jânio Quadros”. E era.

Eu ainda perguntei: “E o que o senhor faz aí?”. Ele respondeu o óbvio: “Estou fumando”. Quer dizer, acho que ele esperava alguém para subir com ele e dar entrevista. Mas, enquanto isso precisava de alguém para emprestar o isqueiro para ele acender o cigarro e fumar. De qualquer forma eu menti: “Foi um grande prazer, Sr. Jânio”. Ele disse: “Obrigado pelo fogo”. Também foi na Barão de Limeira, em 1978, que eu vi o Fernando Henrique Cardoso pela primeira vez. Ele era sociólogo e boa pinta. As más línguas diziam que era um conquistador. De mulheres. Tinha jeito. Achei que não levava jeito para político. Parecia ser muito boa praça.

Ele estava com Regina Duarte e Belchior, dois artistas engajados em sua campanha para o Senado, na sublegenda do PMDB. Montoro era franco favorito. Eu pensei: “Fernando Henrique vai perder e não irá a lugar nenhum na política”. Ainda bem que não resolvi ganhar dinheiro prevendo o futuro. Vi o furibundo Luiz Inácio Lula da Silva passar por ali, com status de líder de banda de heavy metal – o metaleiro mais famoso do Brasil. Lula olhava para os jornalistas como fossem a escumalha da humanidade e estes olhavam para ele como fosse John Lennon. Um amigo jornalista que veio de Londres me confidenciou que ficou sabendo que Lula agia como um rock star: “O que tem de garota e madame atrás do cara, não tá no gibi. E tô sabendo que ele não perdoa nenhuma”. Fiquei chocado. Talvez aí começou a minha teoria de que FCH e Lula eram farinha do mesmo saco.

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E 1979, teve greve de jornalistas. Teve piquete. Aonde? Na Alameda Barão de Limeira. Ninguém entrava. Não havia violência. A comissão de frente era formada por garotas. O pessoal naquele tempo era machista, achava que pegava mal maltratar garotas. Quer dizer, em público. Aí veio aquela figura simpática, uma página da história do jornalismo brasileiro: Samuel Wainer. A mulherada foi em cima, tentar convencer o velho a fazer greve. Ele disse: “Vendo vocês, eu tenho esperança no futuro do Brasil”. Aquilo foi bacana. Ele falou coisas bonitas. Que a juventude iria construir o novo Brasil, que a gente ia ser protagonista não sei de quê e o escambau. Todo mundo feliz. Aí ele disse isso: “Continuem lutando, meus jovens. E não façam como eu”. E entrou para trabalhar. Furou a greve na cara dura. E a gente ficou confusa. Porque ele não era assalariado normal. Ele tinha vendido a Ultima Hora para o Octávio Frias que deu a ele um cargo. Mas em nossa extrema ingenuidade, a gente achava que ele ia bancar o Bakunin. Ele não bancou. Muitos outros passaram por ali enquanto eu estive por lá. Entre os anos de 1978 e 1980 eu vi um pedaço do Brasil passar por aquela rua – quer dizer, alameda. Talvez por isso ela seja especial.