Ele gostava mesmo era de uma charneca

Eu não sei se alguém além de meu amigo Chuveirão ainda lê Florbela Espanca. Corre até o risco de alguém achar que eu estou de sacanagem e que a dona não existe. Florbela Espanca não é lutadora de MMA. É poetisa portuguesa. Como todo grande artista, pouco compreendida em sua época. Em um de seus poemas ela indaga quem fez os homens e deu vida aos lobos, quem fez os monstros, os profetas e o luar. Um poema simples e ao mesmo tempo profundo. A dona era boa na arte, embora um pouco desesperada, como todo ser humano sensível, tanto que deu fim à própria vida.

Estava eu a falar de Florbela Espanca com um amigo quando me referi ao último livro desta senhora. O nome do livro é Charneca em Flor. O cara riu: “Você está de sacanagem. Uma mulher que se chama Espanca e escreve um livro sobre charneca?”. Estranhei o espanto e perguntei: “Você sabe o que é charneca?”. Ele ficou desconfiado e respondeu: “Claro que eu sei”. Depois corrigiu: “Quer dizer, qualquer um sabe”. Eu perguntei, com a certeza de que ele não sabia: “O que é uma charneca?”. Ele respondeu ainda meio desconfiado: “É uma coisa impublicável. No mínimo”. Eu perguntei: “Você sabe o que é xerófila?”. O cara me olhou como se eu estivesse achando que ele fosse um idiota. Ele respondeu: “Claro! É alguma coisa que tem cheiro”.

Então eu disse para ele preparar o coração dele para as coisas que eu ia contar. Eu vim lá do sertão e podia não lhe agradar. Aprendi a dizer não e ver a morte sem chorar. Claro que ele ficou assustado. Falei pouco, mas falei grosso. Ele perguntou se eu estava ficando doido. Eu respondi que doido era ele. Que charneca não era nada daquilo que ele pensava e xerófila não tinha a ver com cheiro. Xerófila é um tipo planta adaptada a lugar seco, que suporta a escassez de água. O exemplo seriam plantas das estepes e do sertão brasileiro. Quanto à charneca, ela é um terreno árido, pedregoso com plantas xerófilas.

Quando eu terminei de fazer a minha explanação, o meu amigo estava impressionado. Não é todo sujeito que chega para outro e vai deitando erudição geológica e botânica sobre charnecas e xerófilas. Eu desconfiei que ele ia espalhar para todo mundo que eu era um dos maiores botânicos do sul do Brasil. Antes que a fama injusta se espalhasse eu tratei de explicar a origem de meu conhecimento sobre o assunto. Eu conheci uma portuguesa e percebi algo que me deixou espantado: ela usava expressões que eu não entendia. Começa que o português de Portugal é falado com entonação diferente, muito mais rápida que o português do Brasil.

Mas quando ela falava do pai dela, ela dizia: “Ele gostava mesmo era de uma charneca”. Aquilo também me deixou inquieto porque embora ela não se referisse àquilo que eu estava pensando, eu não deixava de achar a expressão um tanto curiosa. Fingi que sabia o que era charneca e quando cheguei em casa fui correndo conferir o que era charneca. E foi aí que me lembrei do nome do último livro de Florbela Espanca. Mais, eu descobri que achar engraçado alguém falar em charneca não era tão estranho. Afinal a expressão não é tão comum e sua aplicação em Portugal e no Brasil é diferente.

Em Portugal charneca é área de terreno árido e pedregoso, coberta de urze (um tipo de planta como a Erica e a Calluna que nasce em terrenos pobres), uma vegetação comum no norte de Portugal, também presente na Escócia. A charneca seria o equivalente no Brasil a caatinga do Nordeste brasileiro. No entanto, no Brasil a expressão charneca ganhou significado justamente oposto. Aqui ela é usada para brejos e banhados. O exemplo mais bem acabado seria o Pantanal. Ou seja, a expressão tem um significado em Portugal e tem outro no Brasil. Uma pessoa que gosta de charneca em Portugal, gosta de um lugar árido e seco; no Brasil, de uma área pantanosa.