E Virgínia chorou pelo cachorro Salomão

Virgínia suspeita da existência de algo semelhante à alma nos cães. Não é um sentimento raro, muitas pessoas julgam os cães donos de algo especial, talvez de uma bondade misteriosa – claro que não falo de raças manipuladas para serem agressivas, que são minorias. Virgínia chegou ontem em casa com este dilema. É o tipo de conversa que não anima ninguém logo de manhã. Virgínia começou a chorar. E disse que chorava por causa de Salomão, um cão bom e que deixou um exemplo de vida. Eu disse que não gostava de nomes humanos em cães, embora em Guaratuba exista um cão velho ao qual me afeiçoei que se chama Bartolomeu. O choro de Virgínia não me comoveu.

Eu a deixo trabalhando e depois volto para conferir e fazer pagamento. Mas deixar uma pessoa chorando é insensibilidade – ainda que chore por um cão chamado Salomão. Eu olhei o relógio e pensei: “Vou resolver a parada em cinco minutos. Finjo que me interesso, digo que sinto muito e caio fora”. Resumo: fiquei 30 minutos ouvindo Virgínia contar uma história estranha. E quando ela terminou, eu não sabia que conclusão tirar, porque não podia dizer que o cachorro tinha consciência, embora os cães sejam mestres em nos surpreender. Começa que Salomão não era cão de Virgínia, mas de sua irmã que mora em Tijucas do Sul. Era um guapeca bonito, altivo e fiel, apegado à sua dona, Marilda, casada com Cornélio Afonso de Macedo.

Os dois são evangélicos. O templo que Marilda frequentava ficava nas proximidades de sua casa – o cão ia com ela aos cultos. Ela entrava com o cão no templo. O cão ficava quieto, se comportava e depois de encerrado o ato religioso, ela e o cão iam embora. Se ela fosse conversar com o pastor, o cão a acompanhava. Tudo isso é normal e talvez o que veio a seguir também seja, mas tomou uma dimensão maior pela comoção de Marilda e depois de Virgínia. Esta é uma teoria.

Um dia o pastor foi embora e veio outro. Marilda não simpatizou com o novo pastor e mudou de igreja. A nova também era neopentecostal. Aconteceu a primeira coisa que Marilda e Virgínia acharam estranha. Marilda mudou de igreja, mas Salomão continuou a ir para a igreja anterior. Entrava, ficava deitado num canto e quando terminava o culto, voltava para casa. Marilda tentou levar Salomão para a nova igreja, não deu certo: o cão refugou e correu para o outro templo. Não brigava com a dona, mas não trocou de igreja. Esta já era uma situação inusitada. Mas que pode ser explicada pela fidelidade dos cães, ao contrário de muitas pessoas. Digo fiel a um lugar e não a uma religião.

Mas Salomão também mudou com Cornélio, que o levava para caçar nos arrabaldes de Tijucas. O cão perdeu o entusiasmo com as caçadas e como o dono insistia em levá-lo ele passou a espantar as caças. Um dia ele pulou sobre a espingarda dono e o tiro destinado a uma codorna acertou o tronco de uma árvore. Cornélio achou aquilo uma alta traição. E jurou vingança. Na cabeça dele, se Salomão não servia para caçar, não merecia viver. Virgínia contou o que sucedeu e que motivou a confusão a respeito dos cães: “Numa caçada no final do mês passado, quando o cão espantou outra caça, em vez de atirar na caça, Cornélio atirou no cão”. Eu perguntei: “Ele matou Salomão?” Ela respondeu: “Ele matou o Salomão!”. Chocante.

Eu me lembrei de Chico Xavier que tinha uma cachorra chamada Boneca e quando ela morreu ele achou que o espírito dela veio ensinar uma filhota que ele ganhou. Eu não contei esta história para Virgínia porque ela ia ficar ainda mais confusa. Então, como ela esperava que eu dissesse alguma coisa, eu disse: “Sabe Virgínia, tem um velho escritor que acredita que os cães são o nosso elo com o Paraíso. Eles não conhecem a maldade, a inveja ou o descontentamento”. Ela disse que eu tinha razão e parou de chorar! Mas quem disse a frase foi Milan Kundera. Se eu fosse dizer o que eu penso, eu diria que a natureza dos cães é boa e a dos homens é má e vingativa. Mas se eu dissesse isso, Virgínia ia continuar chorando. E nós precisávamos trabalhar.