É uma espécie de louco aquele que não gosta de literatura

Estava sentado no banco do Parque São Lourenço, com a minha cachorra acompanhando o movimento de pessoas e irritada com os skates que passavam diante de nós. A manhã ensolarada nos retinha e no meu caso ainda apreciava as mulheres bonitas andando ou correndo com roupas próprias para exercícios, que elas devem considerar práticas e os homens acham sensuais: nos dois casos, as roupas estão aprovadas. Um conhecido uruguaio chamado Flávio Molina – omito o nome real – passou por mim uma vez e me cumprimentou. Depois de duas voltas ao redor do lago ele parou e sentou no banco ao meu lado.

Ele disse em português com acentuado sotaque espanhol: “Morreu Gabriel García Márquez. Que perda!”. Eu soube na noite anterior e ao acordar ontem de manhã tinha me esquecido da morte do célebre escritor colombiano. Amigos deixaram mensagens simpáticas e agradecidas nas redes sociais. Eu fiquei quieto. Nada que dissesse ia mudar o que aconteceu. O escritor, aos 86 anos, estava em seu crepúsculo. Deixou bela obra, reconhecida com o Prêmio Nobel e mais de 50 milhões de livros vendidos em todo o mundo. Destes, 2 milhões e 500 mil exemplares no Brasil, onde somente “Cem Anos de Solidão” vendeu mais de 440 mil exemplares.

Gabo, como era conhecido pelos amigos, se foi em grande estilo. Com honra, glória e sabedoria. E, diga-se, fiel aos amigos e princípios. Molina iniciou a falar do escritor colombiano, mas a conversa se espraiou por um tema mais largo – a literatura e o continente latino-americano. Ele me contou que primeiro leu os livros da fase posterior de García Márquez e somente depois conheceu os da primeira fase, que o deixaram fascinado. “Quando li Cem Anos de Solidão achei fantástico. Que coisa linda! E aquilo tudo é recordação do tempo em que ele passou em Arataca, na casa de seu avô”, disse. Eu disse que o primeiro livro de Márquez que li foi “A incrível história de Cândida Erêndira e sua Avó Desalmada”, em 1972 ou 73.

Falamos do peruano Mário Vargas Llosa e do uruguaio e Juan Carlos Onetti e compartilhamos a opinião de que a literatura, é importante embora hoje, numa época de consumo desvairado, não seja reverenciada e apreciada com os devidos rigores e prazer. Comentamos sobre a importância de ler os clássicos. E também aqueles escritores que embora ainda não sejam clássicos se esforçam para um dia serem. São poucos, naturalmente, mas, como se diz das bruxas, que eles existem, existem. Foi então que Molina disse uma frase que me ficou gravada: “A literatura é extraordinária. É uma forma de conhecer outros mundos e realidades. Eu diria o seguinte: quem não gosta de literatura é uma espécie de louco. E como outras formas de loucura, ele não sabe disso”.

Eu fiquei fascinado com a definição. Naturalmente ele se referia à boa literatura, não a esta avalanche de textos reunidos em livros com os objetivos de entupir as livrarias e as caixas registradoras. Claro que nada impede que um bom livro seja vendido para milhões de pessoas, mas são raros os bons livros, como os de García Márquez, que conseguem a façanha sem ainda serem clássicos. A maioria é feita na medida para um público cuja capacidade de gustação literária combine com a capacidade de gustação alimentícia num fast food de quinta categoria. Como diria Molina: “É o mundo de hoje. Não se tem com quem conversar porque as pessoas não tem o que falar”. E se não leem bons livros, tem menos ainda, completou. Mais uma vez compartilhei a opinião. Nós nos despedimos e quando eu estava indo embora me lembrei de um comentário a respeito de García Márquez, se não me engano, proferido por Pablo Neruda, que considerava “Cem Anos de Solidão” o melhor e mais importante livro em espanhol depois de “Dom Quixote”: “Quem não lê García Márquez está sujeito a uma terrível doença que acomete as pessoas que não o leem”. Molina fez uma síntese admirável na mesma linha. Não conhecer literatura produz uma espécie de loucura.