Alguns bons prazeres da vida são simples

Domingo de manhã estava sob a sombra à beira da ciclovia, a alguns metros do Rio Belém, com a minha cachorra tranquilamente esparramada na laje fria, quando passou diante de mim uma garota de aproximadamente dez anos. Ela usava capacete, cotoveleira e pedalava ainda insegura uma bicicleta provavelmente alugada na Bicicletaria do Américo. A garota pedalava com prazer, alternando firmeza com ligeira oscilação superada logo em seguida, numa mistura de curto passeio e aprendizado. Toda vez que passava por mim fazia expressão de felicidade, análoga a de quem chupa um sorvete de creme neste verão inclemente ou come um pudim. Um sorriso tímido de contentamento.

Eu recordei naquele momento o prazer que senti nos primeiros anos da década de 60 quando comecei a andar de bicicleta. Conjeturei que eu devia então fazer uma expressão como a daquela garota – expressão de felicidade. Afinal de contas, para quem não sabe andar de bicicleta, o aprendizado é uma mistura de vertigem e prazer. Uma sensação indescritível. E não só quando criança. Ali nas proximidades da Bicicletaria do Américo eu vi muitas senhoras de 70 anos ou mais com o mesmo sorriso de encantamento e no caso delas talvez o sentimento fosse mais intenso porque passaram toda uma vida querendo aprender a andar de bicicleta e não tiveram a oportunidade. Afinal, o ritmo intenso da vida com trabalho, família, casa, profissão, viagens, compromissos, todas estas coisas, este turbilhão que se chama vida moderna não permitiu. E agora no ocaso da existência elas resgatavam um desejo da primeira juventude que não foi realizado.

Andar de bicicleta é tão simples – e tão saudável. Assim como nadar. As duas atividades nos levam a superar limitações – no primeiro caso, ficamos velozes em terra firme e no segundo, não sucumbimos a um ambiente que embora agradável, o aquático, não é nosso habitat natural. São coisas simples, mas complicadas para quem não sabe. Como tudo na vida. Simples depois que a gente aprende. Complicado se a gente não sabe e convive com pessoas ao nosso redor que sabem. Os meus primos tinham bicicleta e eu não. O filho de minha madrasta tinha bicicleta e eu não. O mundo parecia oferecer mais oportunidades a eles que a mim, porque eles tinham bicicleta. As pessoas andavam rápidas ao meu redor e eu não. Elas podiam pedalar dez quilômetros, e eu não. Até que um dia eu comecei a andar de bicicleta.

Isto aconteceu se não me engano no final de 1964 ou começo de 1965. Numa de minhas férias de fim de ano eu fui para a casa de meu tio Juvenal em Terra Boa. Meu primo tinha enfarado de sua bicicleta, ele agora queria era dirigir o Jeep de seu pai. E a bicicleta ficou para mim. Eu aprendi a andar sozinho. A coisa funcionou assim: o meu tio tinha um armazém de secos e molhados chamado Casas Nossa Senhora Aparecida que ficava na entrada na cidade, na avenida principal. Não havia asfalto, eram apenas duas pistas de areia. Então eu empurrava a bicicleta duas quadras acima do armazém de meu tio e de lá desembestava ladeira abaixo duas quadras diante do armazém. Não tinha medo de cair, porque a areia freava a bicicleta e o tombo era amortecido também pela areia. Aprendi a ter equilíbrio. Aprender a pedalar foi consequência.

A minha tia ia para frente do armazém e tentava entender o que acontecia comigo que passava pelo armazém feito um foguete, feliz da vida, com as pernas abertas, porque ainda não sabia pedalar e segurando o guidão. Eu fiz isto de manhã e à tarde. Até que, quando eu menos percebi, estava andando de bicicleta. Foi com este método tosco que aprendi sozinho. E quando eu comecei a andar, eu estampei aquele mesmo sorriso de felicidade da menina da ciclovia. Como a gente traduz um sentimento deste em palavras? Não tem. Por isso eu fiquei cúmplice do prazer dela, observando-a. E enquanto ela aprendia eu pensei que o homem está sempre aprendendo desde o dia em que nasce até o dia em que morre. Porque eu acho que aprender não é apenas uma forma de sobreviver. É também uma das maneiras estimulantes de ser feliz.